A tarde morria lentamente e Jacira olhou desanimada para a extensa fila a sua frente. Tinha vontade de chegar em casa, tomar um banho, deixar-se ficar sem fazer nada.
Estava cansada também de obedecer, de fazer
coisas das quais não gostava, de trabalhar por obrigação, viver a rotina de sua
vida sem graça e sem objetivos.
A
culpa era da pobreza, que não lhe permitia usufruir as coisas boas da vida.
Tudo era difÃcil.
Trincou
os dentes com raiva e colocou-se no fim da fila. Sabia que naquela linha havia
poucos ônibus e por certo ficaria quase uma hora esperando.
Se
ela houvesse nascido em uma famÃlia de melhores condições financeiras, não
teria de passar por tudo isso. Percebia que para os bairros mais elegantes, os
ônibus, além de melhores, eram mais frequentes.
Irritada,
sentiu um gosto amargo na boca e uma leve dor de cabeça a incomodou.
O
primeiro ônibus chegou, a fila andou um pouco, porém ela não conseguiu
embarcar. Teria de esperar pelo segundo.
Quase
meia hora e o ônibus não chegava. Vida de pobre. Se ao menos tivesse encontrado
um marido com quem dividir os problemas e as despesas, talvez sua vida tivesse
se tornado melhor.
Aos
trinta e oito anos, nunca havia tido um namorado. Os poucos homens que se
interessaram por ela, eram tão pobres quanto ela.
De
que lhe adiantaria casar e continuar a ter uma vida miserável como sempre
tivera? Colocar no mundo crianças sem chance de serem felizes seria um crime
ainda maior.
Conformara-se em viver com a famÃlia. Neto,
seu irmão mais velho, saÃra de casa, fora para o Rio de Janeiro tentar a sorte
e nunca mais voltara.
De
vez em quando escrevia para a mãe, dizendo que estava trabalhando em um hotel,
mas como ganhava pouco não tinha como ajudar a famÃlia.
Jair, outro irmão, mais novo dois anos do que ela, ao
contrário de Neto, fora embora para o Rio Grande do Sul e havia mais de dez
anos não mandava notÃcias.
Às
vezes, ela pensava que talvez ele tivesse morrido por lá. Sua mãe não se
conformava em não saber nada sobre ele e, quando se lembrava disso, ficava
chorando pelos cantos, de cara amarrada, sem falar com ninguém.
Se ela se queixasse, o marido ficava nervoso,
brigava, culpando-a pelo filho nunca mais tê-los procurado.
Enquanto Aristides manteve o emprego na montadora
de automóveis, apesar de ganhar pouco, viviam melhor. Tudo ficou pior quando
ele foi mandado embora e não conseguiu mais trabalho.
Finalmente
o ônibus apareceu e ela conseguiu subir, mas não havia lugar para se sentar.
Ficou em pé. Sentia
as pernas doerem, a
bolsa pesava, mas era melhor seguir assim do que esperar mais tempo na fila
onde ficaria em pé do mesmo jeito.
O ônibus lotado não lhe permitia movimentar-se. Suas costas doÃam e as pernas tentavam manter o
equilÃbrio.
O ar viciado e o cheiro de
suor a incomodavam. De vez em quando alguém lá de trás queria passar para
descer e apertava as pessoas para abrir caminho.
Por fim um rapaz desceu e
ela conseguiu sentar-se. Pelo menos isso. Do seu
lado, um homem robusto suava, apesar do vento que entrava pela janela que ele
abrira.
O ar que entrava trouxe-lhe certo alÃvio. Dez minutos depois, deu sinal para o
ônibus parar, levantou-se
e
tentou passar.
O ônibus
começou
a andar e ela aflita gritou:
- Desce.
A brecada forte a jogou em cima de uma mulher que a
olhou enraivecida.
- Desculpe - murmurou ela. Ao passar pelo motorista não se conteve:
- Não pode esperar os
passageiros descerem? Para que tanta pressa?
- Desce logo, d. Maria - resmungou ele.
Mal Jacira tirou o pé do degrau, o ônibus começou a andar e ela quase caiu. Foi amparada por
um homem que estava parado no ponto. Jacira sentiu um perfume gostoso e assim
que conseguiu equilibrar-se olhou para ele.
Homem alto, bonito, muito
bem-vestido, cheiroso, olhava-a
sorrindo,
e lhe perguntou amavelmente:
- Você se machucou?
Jacira sentiu uma raiva
surda, imensa, e não conseguiu segurar o pranto. As lágrimas desceram pelo seu
rosto e ela soluçava sem parar.
O homem a olhava surpreendido:
- O que aconteceu? Por que está chorando deste
jeito?
Vendo que ela continuava
chorando e que as pessoas em volta o olhavam
desconfiadas, ele segurou o braço dela dizendo:
- Acalme-se.
Venha. Vamos conversar. Apanhou a bolsa dela que estava no chão e começou
a
andar levando-a pelo braço. Jacira deixou-se conduzir docilmente.
Não estava em condições de
refletir.
Um
pouco adiante, havia uma pequena praça e ele a levou até lá, fazendo-a
sentar-se em um banco e sentando-se a seu lado.
Aos
poucos, Jacira foi se acalmando. Ele tirou um lenço do bolso e ofereceu-o a ela
que, envergonhada, apanhou-o e enxugou os olhos.
Depois,
ainda estremecendo de vez em quando, Jacira disse:
- Desculpe,
não consegui me controlar.
- Há
momentos na vida em que não conseguimos nos segurar.
- O
senhor foi muito gentil, estou envergonhada. Não costumo perder o controle
desse jeito.
- Sente-se
melhor?
Ele era um homem bonito, de classe. Muito
diferente dos homens que residiam naquele bairro.
- Já passou. Obrigada.
Ela
fez menção de levantar-se, porém ele colocou a mão sobre seu braço dizendo:
- Descanse. Espere um pouco mais.
- Eu
preciso ir. Minha mãe fica preocupada quando demoro para chegar.
- Você
se machucou ao descer do ônibus? Por essa razão estava chorando?
- Não.
Eu estava chorando de raiva. O senhor tem boa aparência, é elegante, não deve
saber como é vida de pobre.
- Vida de pobre pode ser muito boa. Jacira enrubesceu ao responder:
- Está se vendo que não sabe
nada sobre isso. Deve ter tido sorte na vida. Dá para perceber que é uma pessoa
fina, que nunca soube o que é ser pobre.
- A revolta não vai ajudá-la a melhorar sua
vida.
- É
fácil falar. Você não diria o mesmo se estivesse em meu lugar.
- Você
não me conhece.
- Não,
mas dá para notar que é um privilegiado. Uma pessoa que teve mais sorte do que
eu. É isso que me enraivece. Por que alguns têm tudo enquanto outros nada? Por
que alguns são bonitos, ricos, enquanto outros são condenados à miséria e ao
sofrimento? Estou cansada. Odeio minha vida, minha pobreza. Por que tudo me tem
sido negado? Por que tenho de trabalhar naquele lugar horrÃvel, obedecer
pessoas desagradáveis e no fim do mês não ter dinheiro para comprar nada?
Ela
fez uma pausa enquanto ele a olhava pensativo, e continuou:
- Pode
imaginar como é minha vida? Sem dinheiro, sem amor, odiando cada dia e tendo
de continuar assim?
- Nunca
pensou em jogar tudo para o alto e escolher outro caminho onde pudesse fazer o
que gosta?
Ela
olhou-o incrédula:
- É
isso mesmo o que eu gostaria de fazer. Mas é impossÃvel.
- Por
quê?
- Porque
com meu minguado salário, além de mim sustento meus pais. Se eu deixar o
emprego do que iremos viver? Às vezes sinto raiva dos meus dois irmãos. Eles
saÃram de casa e nunca mais voltaram. Deixaram tudo para mim.
- Como
é seu nome?
- Jacira.
- Eu
me chamo Ernesto Vilares. Gostaria de conversar um pouco mais com você.
Ela
olhou-o desconfiada, porém a fisionomia dele estava calma.
- Para
quê?
- Desde
que começamos a conversar, você só se queixou. Acha que isso vai resolver seus
problemas?
- O
que acha que posso fazer se tudo dá errado?
- Poderia
tentar fazer alguma coisa melhor. Jacira meneou a cabeça negativamente:
- Acha
que gosto de me queixar? Que faço isso por esporte? Ainda não entendeu que sou
uma pessoa sem sorte para quem tudo dá errado?
- Isso
não é verdade. Você é quem procura o lado pior de todas as coisas e assim acaba
tendo o pior. É bom saber que as palavras têm força. Você está mergulhada na
queixa e não percebe as oportunidades boas que a vida lhe dá.
- Eu
nunca tive uma boa oportunidade. Só me acontecem coisas ruins. Sem dinheiro,
sem amor, só faço obedecer. Em casa aos meus pais, no trabalho aos meus chefes.
- E
quando é que você faz alguma coisa que lhe traz alegria?
- Acha
que eu posso? Gosto de ouvir música, mas meu pai não me deixa ligar o rádio
porque diz que o barulho lhe faz mal aos nervos.
- Não
sai para passear com amigos?
- Não
tenho amigos. A última amiga que arranjei, isso há mais de dez anos, meu pai
implicou e infernizou
a vida de minha mãe dizendo que se saÃssemos juntas, ela iria acabar me
perdendo. Ele não gosta que eu saia de casa para passear. Então, essa amiga
percebeu e nunca mais apareceu. AÃ me conformei e nunca mais arranjei outra.
Ele olhava-a penalizado, por fim disse:
- Não
sei como você aguenta
essa situação. Agora entendo a crise que teve há pouco. Se continuar
assim, vai chegar um momento em que não conseguirá trabalhar, nem fazer mais
nada. Você precisa reagir.
- Sinto
que não estou mais aguentando
mesmo. Mas reagir como?
Não vejo saÃda. Já pensei até em acabar de uma
vez com esta vida.
- Pois
eu lhe digo que há saÃda e você poderá encontrá-la quando quiser.
- Sei
que quer me consolar, mas não creio que consiga.
- Quer
saber? Você, durante toda sua vida, só pensou nos outros.
Em obedecer aos pais,
em trabalhar para ajudar a famÃlia, mas para fazer isso, esqueceu-se de si
mesma. Deixou de lado sua alegria, seu bem-estar. Permitiu que os outros
mandassem em sua vida. Quantos anos tem?
- Trinta
e oito.
- Você
não é mais uma criança, é uma mulher, mas não se permitiu crescer, agir por si
mesma. Escolher o próprio caminho. Dentro de você há uma pessoa oprimida que
não suporta mais continuar limitada, presa.
- O
que posso fazer?
- Esqueça
por um momento quem você é e diga: se você pudesse escolher, o que gostaria de
fazer agora?
Ela
fechou os olhos e não respondeu logo. Seu rosto foi se transformando aos
poucos, ficando distendido,
e fundo suspiro saiu do seu peito.
- Ah!
Eu gostaria de ir a um baile de formatura. Vestir um vestido longo, estar num
salão cheio de flores, a meia-luz, dançando com um homem alto, bonito. Sempre
sonhei em me formar, mas não pude continuar estudando.
- Mas
você pode. É hora de pensar mais em você. Ela abriu os olhos e seu rosto contraiu-se
novamente:
- É um
sonho impossÃvel.
- É um
projeto que você pode realizar. Olhe, vou dar-lhe meu cartão. Eu posso ajudá-la
a mudar sua vida para melhor.
- Como
assim? Está me oferecendo um emprego?
- Não.
Vou ensinar-lhe como realizar seus sonhos. Aqui está o endereço. Não é longe
daqui.
- Mas
eu chego tarde todos os dias.
- Pode
ir à noite. Se quiser poderá ir amanhã mesmo. Estarei lá para explicar-lhe
melhor.
Ela
segurou o cartão e colocou-o na bolsa. Depois, levantou-se:
- Vou
ver se dá para ir.
- Sente-se
melhor?
- Sim.
Desculpe a cena que eu fiz.
- Está
tudo bem. Não deixe de ir. Estarei a esperando. Até amanhã.
- Até
amanhã.
Jacira
estendeu a mão que ele apertou e se foi rumo a sua casa. Não sabia se deveria
ir àquele lugar. O que ele queria com ela? Por que a tratara com tanta atenção?
Ela não tinha dinheiro, não era bonita.
Estava claro que ele não estava
interessado nela. Um homem tão fino, com tanta classe, tão agradável!
Ela
chegou em casa e encontrou a mãe de mau humor.
- Por
que demorou tanto? Aconteceu alguma coisa? Seu pai já estava quase indo atrás
de você.
- Não
aconteceu nada. Foi a condução. O ônibus demorou.
- Deixei
seu prato no forno. Coma e não se esqueça de lavar tudo.
Deixei as panelas
para você. Estou cansada. Não aguentava mais.
Trabalhei o dia inteiro nesta casa.
Depois, recolha a roupa no varal porque já deve estar quase seca. Pode chover
esta noite.
Jacira
olhou desanimada. Estava cansada, as pernas doÃam e as costas pesavam como
chumbo. Mas não retrucou. Lavou as mãos, foi à cozinha, apanhou o prato de
comida no forno e colocou-o sobre a mesa.
Arroz,
feijão, ovo frito e duas rodelas de tomates. Suspirou resignada. Não tinha
ânimo para esquentar a comida. Havia três panelas sujas sobre o fogão e ela não
queria sujar mais uma.
Sentou-se.
Enquanto comia sem vontade, lembrou-se das palavras daquele homem.
"-
Vou ensinar-lhe como realizar seus sonhos. Eu posso ajudá-la a mudar sua vida
para melhor."
"Pois
sim!", pensou irônica. "Ele não sabe nada sobre a vida. Bem-vestido,
cheiroso, elegante. Um homem de sorte. Com certeza nunca enfrentou os problemas
que eu enfrento."
A
comida estava sem gosto e ela, depois de algumas garradas, levantou-se, jogou
o restante no lixo e procurou o avental para lavar a louça.
A
mãe não havia deixado apenas as panelas, mas os pratos, talheres, algumas
xÃcaras, o que a fazia supor que havia naquela pia toda a louça utilizada durante
o dia.
Esquentou
uma chaleira de água e começou a lavar. Enquanto fazia o trabalho, sentia que a
dor nas costas a incomodava, mas não parou nem um minuto para descansar.
Queria
terminar logo para ir se deitar. Quando terminou a louça, limpou o fogão,
guardou tudo, foi ao quintal e recolheu a roupa.
Depois, levou-a ao quartinho.
Lá estava o cesto onde deveria colocá-la para passar. O que faria no sábado Ã
tarde.
Sua
mãe deixava toda a roupa da semana para ela passar. É que ela se queixava de
dores nos braços e Jacira preferia poupá-la.
Enquanto
dobrava a roupa para colocá-la no cesto, pois sua mãe exigia que fizesse isso
com cuidado, Jacira tentava combater sua revolta pensando que pelo menos, ela
conseguira comprar a máquina de lavar roupas, que ainda estava pagando a
módicas prestações, o que lhe poupava o trabalho de lavagem.
Quando terminou tudo, a casa estava à s
escuras. Seus pais já haviam se recolhido.
Ela
subiu para o quarto. Ao tirar a roupa, o cartão que o homem lhe dera caiu do
seu bolso. Ela apanhou-o e leu. Depois pensou:
"Vou
jogar isso fora. Ninguém dá nada de graça. Esse homem deve estar querendo
alguma coisa. Talvez seja uma arapuca."
Assim,
colocou-o sobre a mesinha
de cabeceira e suspirou resignada. Lavou-se e, finalmente, deitou-se.
Estava tão cansada que não conseguiu dormir de pronto.
No
dia seguinte, tudo se repetiria igual ou pior do que naquele dia. Ela estava
destinada a viver essa vida ruim e sem alegria. Isso não valia a pena.
Sua
mãe a ensinara a rezar antes de dormir. Ela, porém, havia muito deixara de
fazê-lo. Para que rezar a um Deus que se esquecera dela?
Sua
vida estava traçada e não havia jeito de mudar nada. Seu destino era ficar
assim, sofrendo, de mal com a vida. Dia a dia a revolta que sentia no coração
aumentava.