Jacira chegou em casa carregando várias sacolas que colocou sobre o sofá da sala. Estava bem-vestida e arrumada, muito diferente do que fora no passado.
Geni aproximou-se curiosa e disse admirada:
- Quanta
coisa! Fez compras e não me chamou para ir junto?
- Eu
estava com pressa. O dia da inauguração está chegando e ainda não está tudo
pronto.
- Não
vai abrir os pacotes?
- Não.
Vamos levar estas coisas para o ateliê. Ester vai passar aqui para me buscar.
A
curiosidade de Geni aumentou
e ela não se conteve:
- Ainda
não estou acreditando que você vai ser sócia de uma empresa de luxo! Parece um
milagre! Só acredito vendo!
Jacira
fixou-a séria e respondeu:
- Pode
acreditar.
A
campainha tocou e Jacira exclamou:
- Deve
ser ela. Correu a abrir. Ester entrou espargindo um de
licioso perfume pelo ar. Era a primeira vez que ia casa de Jacira.
Geni não sabia se deveria ficar
ou esconder-se. Lançou o olhar sobre a recém-vinda, entre curiosa e admirada.
Ester aproximou-se e
estendeu a mão dizendo:
- A senhora deve ser d. Geni.
- Sou
a mãe de Jacira - respondeu ela apertando a mão estendida.
- Muito
prazer. Eu sempre tive vontade de conhecê-la. A senhora deve orgulhar-se da
filha que tem.
- É...
De fato...
Voltando-se para Jacira, Ester perguntou:
- Seu
pai não está?
- Não.
Deve estar no bar.
-Gostaria
de conhecê-lo também. Mas não faltará ocasião.
- A senhora
aceita um café, uma água? - perguntou Geni, parecendo ter superado o constrangimento.
- Uma
água. Geni saiu
enquanto Ester piscou maliciosa par
Jacira dizendo baixinho:
- Ela
está surpresa e ainda não viu nada! Quer estar junto quando ela entrar em nosso
ateliê!
Jacira suspirou e respondeu:
- Eu
também! Sabe que às vezes até eu duvido que tudo isso esteja acontecendo?
Ester abraçou-a:
- Está
ficando lindo! Vocês têm alma de artista.
- Mas
você é quem dá a palavra final. Eu e Margarida estamos aprendendo.
Geni voltou
com um copo de água em um pratinho e ofereceu-o a Ester, que agradeceu. Depois
que ela tomou a água Jacira disse:
- Vamos
levar tudo para o carro. Margarida esta esperando.
- Conseguiu
comprar tudo?
- Quase tudo. Consegui o principal. Vamos embora.
Ester despediu-se de Geni que as acompanhou até a
porta. Jacira nunca vira a
mãe tão amável e sorridente.
Elas saíram e Geni esperou
com impaciência que Aristides chegasse. Precisava contar a alguém sobre aquela
visita.
Ela não costumava esperar o
marido voltar do bar. Quando ele demorava um pouco mais, encontrava-a dormindo.
Passava das onze quando
finalmente Aristides entrou em casa.
Vendo-a
na
sala, a sua espera, perguntou:
- Você ainda acordada? Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu, sim. Você vai ficar tão surpreso quanto
eu. O que Jacira nos disse é verdade. A tal da d. Ester esteve aqui para
buscá-la. Você precisava ver o carro dela!
- Ela entrou?
- Entrou, sim. Mulher linda,
de classe, cheirosa! Muito simpática e educada. Cumprimentou-me. Nessa hora fiquei com
vergonha da nossa casa. Uma mulher tão rica e fina, nosso sofá está descorado,
a casa é velha, eu nem sabia o que dizer!
- Bobagem. Ela sabe que
somos pobres. Pelo menos você tinha limpado a casa?
- Ainda bem que sim. Senão,
teria morrido de vergonha.
- Jacira nos contou que eles
são muito ricos. Era de se esperar que um dia ela viesse aqui. Afinal, Jacira é
sócia dela.
- Você acredita mesmo nisso?
- Claro. Eu pedi a Jacira
para ver o contrato social da empresa. Está tudo certo. São três sócias, Margarida,
Jacira e Ester. O marido dela emprestou o capital e vão dividir os lucros em
partes iguais.
Nossa filha agora é uma empresária e, do jeito que vai, pode
mesmo ganhar muito dinheiro.
- Estou boba! Nunca podia
imaginar que ela con-seguisse! Parece que tirou a sorte grande!
- Ela
tem se esforçado muito. Trabalhado com disposição. Merece cada tostão que está
ganhando!
- É...
Eu gostaria de conhecer esse ateliê.
- Ela
nos convidou para a inauguração, mas não sei se devemos ir...
- Por
que não?
- Só
vão pessoas finas, de classe, é um lugar de luxo. O que vamos fazer lá? Não
sabemos como nos portar no meio daquelas coisas finas. Vai ter um bufê, salgadinhos e tal. Coisas delicadas de
gente de classe. Nós vamos fazer feio.
- Mas
se ela nos convidou, eu gostaria de ir, nem que fosse para ficar em um canto
sem fazer nada. Nunca vi uma festa dessas.
- Isso
não é para nós! É melhor não se iludir. E tem mais...
Ele
fez ligeira pausa, enquanto Geni baixou a cabeça triste.
Aristides tinha razão. Eles iriam
destoar.
- Pode
esperar - continuou ele -, Jacira vai ganhar dinheiro e não vai querer mais
morar aqui, nesta casa pobre, neste bairro distante.
Ela vai acabar nos
deixando, mulher...
assustava,
mas por outro lado sentia que se ela fosse mesmo embora não deixaria que eles
passassem necessidade. Ainda mais se tivesse dinheiro!
Naquela
noite, Jacira não voltou para casa. Dormiu na casa de Margarida. Na hora do
almoço chegou em casa e perguntou:
- Papai
já foi para o bar?
- Acabou
de sair. Por quê?
- Ontem
eu me esqueci de avisar que hoje eu queria sair com vocês dois para comprar
roupas.
Geni remexeu-se inquieta e repetiu:
- Comprar
roupas?
- Sim.
Vocês precisam se arrumar para a inauguração.
- Nós
não vamos. Seu pai acha que iríamos destoar no meio daquela gente fina.
- Pois
eu quero ver os dois lá. É o meu dia de vitória! Estou conseguindo subir na
vida. Quero festejar com minha família.
Os
olhos de Geni encheram-se
de lágrimas e ela tentou disfarçar. Jacira abraçou-a dizendo:
-
Somos pobres, mas somos
gente. Não somos mais do que ninguém, mas também não somos
menos. Temos trabalhado honestamente, merecemos melhorar de vida. Não temos
nada para nos envergonhar. Vocês vão comigo, sim. Quero nossa família reunida
nesse momento tão importante de minha vida! Vá se arrumar e nós vamos sair já
para comprar tudo que for preciso. Tem mais. Já marquei hora no cabeleireiro
com meu amigo Belo para cuidar dos seus cabelos e fazer um tratamento de
beleza. Quero meus pais muito elegantes!
Geni não suportou a emoção, caiu em pranto, sem poder
controlar-se. Jacira deixou que ela extravasasse toda a emoção, depois,
vendo-a mais calma e um pouco envergonhada pediu:
- Vá
lavar o rosto e se arrumar. Não temos muito tempo. Ainda quero passar no bar,
falar com papai.
Geni apressou-se a ir arrumar-se enquanto Jacira fazia uma
lista do que achava que deveria comprar para que eles ficassem apresentáveis.
Elas
saíram e Geni se
esforçava para controlar a emoção. Estava atordoada, hesitante. Durante toda
sua vida fora ela quem determinara o que a filha deveria fazer. Sentia-se
segura em suas crenças, não se detinha para pensar em nada diferente do que
aprendera com seus pais.
Jacira
se rebelara, agia completamente diferente do que ela achava certo. Tinha
certeza de que a filha iria fracassar. Mas para sua surpresa, as coisas estavam
dando certo. Ela estava derrotando a miséria em que tinham vivido, revelando
capacidade, provando que sabia o que estava fazendo.
As coisas nas quais Geni
acreditava começaram a ruir. A falsa segurança em que se refugiara desaparecia
a cada dia, e ela, não podendo mais se apoiar nelas, sentia-se insegura, não confiava mais em suas próprias
opiniões. Julgava-se ignorante, incapaz.
Jacira estava certa e ela errada. Um sentimento de
culpa começou a atormentá-la. Considerava-se
inútil,
não sabia mais o que era certo ou errado.
Seus filhos tinham ido
embora por causa dela que não soubera educá-los. Sua forma de pensar
prejudicara o progresso da família.
Enquanto Jacira obedecera o que ela dizia,
não tinha conseguido melhorar de vida.
Saiu com Jacira para fazer
compras, mas estava sem capacidade para escolher. Deixou que a filha
decidisse.
Jacira notou que ela não
estava bem, fez o que pôde para que ela se entusiasmasse. Mas Geni estava aérea
e ela fez o melhor. O tempo era curto e não lhe permitia esperar.
Comprou o que achou adequado
e depois foram até o bar. Jacira convenceu o pai a comparecer à inauguração.
Combinaram que na manhã seguinte iriam comprar as roupas dele.
Quando Jacira foi à casa
de Margarida, conforme combinara, encontrou Lídia e a filha. Lídia disse logo:
- Sinto que você está
preocupada. O que aconteceu?
- Você notou? Levei minha
mãe para fazer compras, pensei que ela se entusiasmaria com as coisas bonitas
que compramos. Mas não, pareceu-me
deprimida,
atordoada, sem capacidade de dar opinião.
Eu precisei escolher tudo. Logo ela
que sempre foi forte, teve opinião. Será que está doente?
Lídia pensou um pouco,
depois disse:
- Não. O problema é que as coisas mudaram, e ela
ainda não assimilou.
- Como assim? Nós estamos
mudando para melhor! Achei que ela fosse ficar feliz!
- Mas
ela está pagando um preço alto pelas crenças erradas que cultivou durante tanto
tempo. Está se culpando, julgando-se errada, sem capacidade.
Jacira
sentou-se fixando Lídia admirada:
- Por
essa eu não esperava. Ela nem queria ir à inauguração.
Lídia
sorriu levemente ao responder:
- O
que está acontecendo é natural. Durante a vida inteira ela impôs suas ideias à família e achava que
estava fazendo o melhor. Fez o que pôde para manter você sob a orientação dela,
na qual acreditava. Ela pensava estar "salvando" a todos, prevenindo
o mal e acabou de descobrir que estava fazendo tudo errado. Por esse motivo não
confia mais em seu arbítrio, está sem rumo, não sabe como agir.
- Deve
ser isso mesmo. Hoje ela me parecia uma barata tonta.
Fiquei com medo que ela
estivesse perdendo a lucidez. Afinal, já está com quase sessenta anos.
- reprimindo
o que sente, querendo entrar nos papéis sociais, perderá a lucidez.
- É
um castigo? - indagou Margarida atenta ao assunto.
- Absolutamente.
Deus não castiga ninguém. Foi a própria Geni quem escolheu esse caminho. Se ela acordar para a
realidade poderá dar um passo à frente. Nunca é tarde para melhorar.
- Entendo
- comentou Jacira. - Não vou deixar que minha mãe mergulhe na alienação. Farei
o que Puder para ajudá-la.
- Seria
bom aconselhar-se com o dr. Ernesto. Ele é ótimo nesses assuntos - tornou
Lídia. - Eu mesma gostaria muito de fazer mais alguns cursos com ele. De
tempos em tempos eu volto lá para reciclar as ideias.
- Vou levar mamãe a essas aulas.
- Se ela aceitar é meio caminho andado. Ela tem
alguma fé religiosa? - indagou Lídia.
- Diz que é católica, mas nunca vai à igreja.
- Nesse caso seria bom conversar com ela sobre a
vida espiritual. A crença de que somos eternos, que a vida continua depois da
morte física, fortalece nosso espírito. Quando você tem certeza de que Deus
está dentro de você, inspirando, protegendo, distribuindo bênçãos, os desafios
necessários ao nosso crescimento ficam mais leves. Você já conversou com ela
sobre suas experiências com os espíritos?
Jacira meneou a cabeça
negativamente:
- Não. Não sei se ela entenderia.
- A verdade tem muita força. Você sabe disso.
Experimente conversar com ela sobre o assunto. Comece aos poucos e conforme
ela reagir vá falando. Você pode se surpreender.
Jacira sorriu e respondeu:
- Pode ser. Vou experimentar. Assim como me fez
tanto bem, poderá ajudá-la também.
Estela e Marinho avisaram
que o carro de Ester tinha chegado para levá-las ao novo ateliê. Elas se apressaram, porquanto havia ainda muitas
coisas para fazer.
O tempo passou rápido e no
dia da inauguração, tudo ficou pronto. Na noite da véspera, as três fizeram um
exame geral para que nada faltasse.
Estava tudo uma beleza.
Olhando ao redor, Jacira sentia-se
emocionada
recordando-se da ajuda que recebera das pessoas. De Ernesto, que despertara
nela a vontade de lutar para progredir; de Margarida, que com bondade dividira
com ela seus conhecimentos e seus sonhos; de Ester, que tornara possível a
realização dos projetos; e finalmente do espírito
de Marina, cujo carinho e amor a acordara para a espiritualidade, modificando
sua forma de olhar a vida.
Fitando o rosto emocionado
e alegre de Margarida e de Ester, Jacira sugeriu:
- Antes de irmos embora,
vamos fazer uma prece de agradecimento a Deus que nos tem abençoado com sua
proteção e auxílio.
- Ótima
ideia. É hora de agradecer - aduziu Margarida.
- Concordo. O amor chegou
com Renato e este projeto veio completar minha
realização.
Elas deram as mãos fazendo
um círculo e Jacira sentiu que uma energia suave e agradável a envolvia e
começou a falar:
- A gratidão é um sentimento de amor que eleva o
espírito e nos une a Deus. É o reconhecimento do imenso amor com que Ele nos
cerca e a certeza de que tudo é possível quando sob sua proteção,
esfor-çamo-nos para fazer a parte que nos cabe na realização dos nossos sonhos
de progresso. Desejamos seguir em frente, fazendo nosso melhor, contribuindo
para que as pessoas que procurem nossos serviços sejam abraçadas com respeito,
alegria e carinho.
"Pedimos a Deus que
nos inspire para que possamos aprender mais a cada dia, e de nossa parte vamos
nos esforçar para fazer desta casa um lugar onde a beleza, o trabalho, a
dedicação sejam constantes. Desta forma, desejamos corresponder a tudo que
recebemos trabalhando com prazer, alegria e honestidade. Aqui é um lugar de
harmonia e paz. Assim será. Que Deus nos abençoe."
Jacira calou-se e elas abriram os olhos sentindo-se leves. O cansaço dos últimos dias tinha
desaparecido.
- Estou flutuando! - comentou Ester.
- Que coisa boa! Você fez
uma prece linda! Nunca vou esquecer este momento.
- Falei o que estava
sentindo. Mas também, senti que Marina estava aqui, inspirando-me.
- Com essa proteção, estou
certa de que amanhã tudo vai ser um sucesso! - comentou Ester.
Margarida não se conteve:
- Só pode! Está tudo tão
lindo!
- Vamos embora. Precisamos descansar
- lembrou Jacira. - Amanhã precisamos estar dispostas.
- Não sei se vou conseguir
dormir. A emoção é demais. Mas é bom irmos embora logo, Jacira. Ester mora do
lado, mas nós moramos longe.
- Meu motorista vai levá-las
em casa.
- Não é preciso - disse Jacira. - Passa das dez e neste
horário os ônibus não estão lotados.
- Eu insisto. Ele já está na porta as esperando.
Quando elas saíram, o carro as estava esperando.
Passava das onze quando
Jacira chegou em casa. Ao entrar, encontrou Geni a aguardando na sala.
- Mãe, pensei que estivesse
dormindo.
- Estou sem sono. Pensando
como vai ser amanhã.
- Vai ser uma beleza. Está tudo muito bem arrumado.
Ester tem muito bom gosto e nos ajudou.
- Meu coração está apertado.
- Por quê? Não se sente
feliz em melhorar de vida?
Ela não respondeu logo.
Ficou pensativa por alguns segundos e, vendo que Jacira a olhava atentamente,
continuou:
- Estou com medo de fazer feio. Não quero envergonhá-la.
Jacira aproximou-se e colocou a mão no braço dela dizendo:
- Com aquela roupa linda que
nós compramos, aqueles sapatos elegantes?
- Eu estou me sentindo feia,
velha. Não sei conversar direito.
Jacira sorriu e respondeu:
- Além do mais, iremos ao
salão do Belo para arrumar os cabelos e fazer uma maquiagem. Você vai ficar muito elegante.
- Seu pai está todo
orgulhoso. Disse que vai ao barbeiro logo cedo. No bar já contou a todos sobre
a inauguração. Só fala de você o tempo todo.
- Ele está feliz, mamãe.
Venha, sente-se aqui a meu lado no sofá.
Ela
obedeceu e Jacira, lembrando-se da conversa com Lídia, segurou a mão dela
dizendo:
- Você
não precisa ter medo de nada. Eu me esforcei e Deus nos deu uma chance de
melhorar. Nós precisamos agradecer a Ele o que recebemos e fazer o melhor para
seguir em frente e aproveitar. Vamos rezar.
- Rezar?
Você nunca foi religiosa.
- Eu
não sou. Mas nada acontece sem que Deus permita.
- Isso
minha mãe sempre dizia.
- Pois
é. Então vamos agradecer e rezar.
Jacira
continuou segurando a mão dela e fez uma prece de agradecimento, pedindo
inspiração para fazer o que fosse preciso a fim de que tudo saísse bem.
Quando
terminou, abriu os olhos e notou que os olhos de Geni estavam marejados.
- É
bom rezar. Faz bem. Eu tinha me esquecido disso.
- Quando
a gente está no bem e com Deus no coração, tudo dá certo. Agora, vamos dormir.
Amanhã será um dia cheio.
Elas
subiram, e Jacira notou que o rosto de Geni estava mais sereno. Tudo estava bem e ela, apesar do
evento do dia seguinte, sentia-se em paz.
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