No sábado, diante do guarda-roupas, Jacira
olhava preocupada para os vestidos pendurados. Ela queria muito ir à casa de
Ernesto assistir às aulas. Depois da ida ao cabeleireiro, ficara motivada.
Ainda bem que tinha o outro vestido que Margarida reformara.
Resolveu
colocá-lo.
Nos
últimos dias, à noite, fechada em seu quarto, ela treinara maquiar-se, e estava
contente com o resultado.
Arrumou-se
com cuidado, fez uma maquiagem leve, penteou os cabelos, olhou-se no espelho
minuciosamente. Sorriu satisfeita. A sensação de estar elegante, de sentir-se
mais bonita, era nova, mas muito agradável. Sentia vontade de cantar, rir,
voar.
Apanhou
a bolsa e saiu. Ao passar pela sala onde Aristides assistia ao programa esportivo, e Geni lia uma de suas revistas
favoritas, estremeceu quando a voz estridente de sua mãe gritou:
-
Aonde vai a esta hora da tarde vestida desse jeito?
- Vou
passear.
- Tide!
Você não fala nada? Ela pintou a cara de novo e vestiu essa roupa apertada.
Aristides olhou contrariado e, sem prestar muita atenção,
resmungou:
- O
que está acontecendo aqui? Um homem velho, cansado não pode assistir ao seu
programa favorito porque vocês duas não se entendem? Jacira, trate de obedecer
sua mãe.
Jacira
sequer respondeu, virou as costas e saiu antes que Geni começasse a cena de sempre.
Na rua, tratou de distanciar-se rapidamente, com medo de que sua mãe saísse na
rua para repreendê-la, como já fizera algumas vezes.
Felizmente
o ônibus estava chegando e ela conseguiu embarcar. Chegou à casa de Ernesto
dez minutos antes do horário que ele havia marcado. O porteiro a reconheceu e
abriu o portão para que ela entrasse.
Várias
pessoas conversando, rindo, entraram também. Estavam bem-vestidas e Jacira
sentiu receio de não estar vestida de acordo, um aperto no peito a incomodou.
Pensou
em ir embora, mas nesse momento Ernesto estava no hall conversando com algumas pessoas
e, vendo-a, aproximou-se sorrindo:
- Que
bom vê-la! Eu estava aqui na entrada pensando se você viria.
- Como
vai? - indagou ela apertando a mão que ele lhe estendia.
- Bem,
e você está cada dia melhor. Esse penteado fica-lhe muito bem.
Jacira sentiu a opressão desaparecer:
- Obrigada.
- Veio assistir a aula de
hoje? Estamos iniciando uma turma nova.
Ela
hesitou um pouco, depois disse:
- Não
sei. Antes preciso perguntar-lhe... - calou-se embaraçada.
Ele
consultou o relógio e respondeu:
- Temos alguns minutos. Vamos a minha sala. Uma vez
sentados um diante do outro, Ernesto
disse:
- Pode falar. Quais são suas dúvidas?
- Aqui é um ambiente fino, de pessoas bem-ves-tidas,
não sou desse meio. Só tenho este vestido e assim mesmo porque Margarida me deu
de presente.
Ele fixou seus olhos e
perguntou:
- Você sente vontade de
assistir às aulas?
- Sinto. Conversar com você
me fez muito bem. Deu-me coragem para enfrentar
minha família e mudar as coisas que me deprimiam.
- Nesse caso deve fazer o
curso. Estou certo de que vai aproveitar muito. Você está no ponto certo para
conseguir transformar sua vida, conquistando o que deseja.
- As pessoas podem não
gostar de me ver aqui.
- Se você não deixar o
orgulho de lado e lutar pelo que deseja, não poderei fazer nada por você.
- Não é por orgulho.
- É sim. Você se julga menos
do que essas pessoas e receia enfrentar uma convivência temendo cometer erros
e ser criticada.
Entretanto, você não é menos nem mais do que ninguém.
- Eu sei o meu lugar. Sou
uma operária pobre e sem instrução.
- As pessoas valem pelas
qualidades que têm e não pela classe social em que se colocaram.
- Eu nasci assim, se pudesse
escolher seria diferente.
- Você pode escolher. É
livre para decidir o que deseja ser e transformar sua vida.
Jacira meneou a cabeça
negativamente:
- Não creio. Quem nasce pobre não tem escolha. É
trabalhar no que puder e resignar-se com o que tem.
Ernesto
sorriu e respondeu:
- Vejo que está iludida. Está na hora da aula. Não
temos mais tempo. Vamos. Depois conversaremos.
Um
pouco hesitante, Jacira o acompanhou. Ao entrarem na sala lotada, o burburinho cessou e Ernesto colocou
mais uma cadeira ao lado da primeira fileira, pedindo a Jacira que se sentasse.
Depois,
apanhou o microfone, deu as boas-vindas a todos e começou a falar:
- Todos
desejamos conquistar a felicidade, mas a maioria tem dificuldade de encontrar o
caminho. Depois de anos de estudos sobre o comportamento humano, fazendo
vivências com pessoas, descobri que a vida é muito mais do que parece e que
nossa importância como pessoa é muito maior do que eu pensava.
Ele
fez ligeira pausa passando os olhos pelas pessoas que o ouviam com atenção e
continuou:
- Tornei-me espiritualista.
Descobri que nosso espírito já viveu outras vidas aqui na Terra. Ao renascer,
ele recebe um novo corpo para continuar a aprendizagem que visa o
amadurecimento do seu espírito. Quando esse corpo morre, o espírito volta para
seu lugar de origem, em outras dimensões do Universo. Em nosso inconsciente,
guardamos todas as experiências de todas as nossas vidas na Terra.
Quando
estamos aqui, não nos lembramos delas para ficarmos livres do passado, embora
ele discretamente continue nos influenciando.
Os
olhos de Ernesto brilhavam e sua voz agradável tinha a firmeza da sua crença.
Fez breve silêncio, depois continuou:
- No meu conceito, a vida
existe de forma plena e verdadeira em nosso espírito, o condutor absoluto da
nossa vida. Vocês vieram para um curso de autoajuda, e eu estou me colocando,
porquanto quem deseja melhorar seu mundo interior não pode ignorar essa base.
Se tem alguém aqui que não concorda, pode retirar-se e apanhar seu dinheiro de
volta.
Ele esperou alguns minutos e como ninguém fez
menção de sair, ele continuou:
- Muito
bem, podemos então começar nossa aula.
Jacira
ouvira tudo com atenção, envolvida pelo olhar Ernesto e apesar de nunca ter
pensado nesses assuntos, sentiu que tudo fazia sentido em seu coração.
Durante
uma hora, Ernesto discorreu sobre problemas psicológicos determinantes de
resultados negativos e falta de reconhecimento das pessoas na apreciação e
utilização de suas qualidades como causa da infelicidade. Por fim disse:
- Ao
finalizar, peço-lhes que analisem todos os fatos da vida sob a ótica
espiritual.
Algumas
pessoas levantaram a mão desejando fazer perguntas, mas Ernesto disse:
- Na
próxima aula lhes direi como fazer isso. Até a próxima semana.
Sob
os aplausos entusiasmados dos alunos, Ernesto deixou a sala. Jacira estava
encantada. O tempo passara rápido e ela notara que muitas crenças que ele disse
serem erradas, ela tinha cultivado a vida inteira.
Deixou
a sala e no corredor viu Ernesto rodeado por algumas pessoas conversando.
Queria agradecer e despedir-se, mas não querendo interrompê-los foi passando
discretamente, porém ele a chamou:
- Jacira,
espere.
Ela parou. Ele continuou:
- Desejo
apresentar-lhe algumas pessoas. Ela aproximou-se e ele as apresentou:
- Jacira,
esta é Marina, José, Marcos e Sônia.
- Muito
prazer, Jacira - respondeu ela um pouco tímida. Mas eles um a um abraçaram-na,
dando-lhe um beijinho na face.
Jacira
sentiu uma onda de prazer invadir seu coração. Eles a cumprimentaram com
carinho e alegria.
- Jacira
está começando hoje - esclareceu Ernesto.
- Nós
já estamos estudando aqui há dois anos - disse Marina.
- Eu
mudei minha vida depois que vim para cá - afirmou José. -
Vivia deprimido,
triste, de mal com a vida. Agora sou outra pessoa.
- Aconteceu com todos nós - garantiu Sônia sorrindo.
Conversaram alguns minutos
mais, depois se despediram. Vendo-se
a sós
com Jacira, Ernesto disse:
- Venha tomar um café comigo. Vamos conversar. Quero
saber o que você achou.
Ela acompanhou-o até a sala e sentaram-se
à mesa
onde já havia café, leite, biscoitos e algumas xícaras.
Ele puxou a cadeira para
que ela se sentasse e sentou-se
em
seguida. Serviu-os de café com leite e depois
disse:
- E então? O que sentiu durante a aula? Jacira
pensou um pouco, depois respondeu:
- Eu me senti muito bem.
Principalmente quando disse que é espiritualista. Sempre acreditei que a vida
continua após a morte do corpo físico, mas não conheço essa religião.
- Não é uma religião. A
crença na vida após a morte e na reencarnação são naturais, fazem parte da
vida.
- Se fossem naturais as
pessoas não teriam tanto medo de morrer.
- A maioria se recusa a
estudar o assunto por preconceito. De tanto dramatizar a morte, evitam tudo o
que se relaciona a ela. É ilusão, uma vez que todos morreremos um dia.
- Só em falar nisso fico toda arrepiada! Ernesto riu
gostosamente e continuou:
- Se você soubesse o que
acontece depois não diria isso. Lembra-se
da
outra vez que esteve aqui?
- Eu dormi e tive um sonho
lindo. Nunca mais me esqueci.
- Eu lhe falei que não foi
sonho. Você foi realmente a um lugar fora deste mundo.
- Você me disse que nós
podemos nascer aqui várias vezes. Ainda não entendi bem como pode ser isso.
- Mais tarde compreenderá melhor. Naquela tarde,
quando você dormiu, seu espírito saiu do corpo e foi visitar outra dimensão do
Universo. É para lá que vamos depois da morte.
- Se isso for verdade, quero
morrer agora!
- Calma.
Só vai viver lá se tiver vivido aqui uma vida produtiva e estiver bem.
- Minha
vida é muito ruim. Nesse caso penso que nunca irei para lá.
- Você
está enganada. O que conta não é sua condição social, mas a elevação do seu
espírito. Para conquistar isso basta procurar se tornar uma pessoa melhor, mais
lúcida, mais feliz.
- Isso
é tentador, eu me sentiria muito feliz se pudesse viver lá.
- Você
tem tempo para conquistar essa condição. Tem muitos anos para viver aqui e
aprender.
- É
isso que você vai me ensinar?
- Podemos
trocar ideias sobre
espiritualidade porque, como eu disse, sem essa base fica mais difícil
conquistar o equilíbrio.
Tentarei passar para você o que sei sobre o assunto,
principalmente por saber que você tem sensibilidade e vai entender. Mas nas
aulas falo mais sobre o lado psicológico.
- Por
que você disse hoje que as pessoas que não concordassem poderiam sair?
- Por
que as pessoas são livres e eu não estou pregando nenhuma religião, mais minhas
palavras refletem as pesquisas que tenho feito ao longo dos anos e comprovam
essa realidade. Acho que estou falando muito e não desejo impor minhas ideias. É que me entusiasmo quando
falo do meu trabalho.
- Eu
ficaria o dia inteiro ouvindo o que você diz. Sinto que está me fazendo bem.
Penso que sou eu que estou abusando. As pessoas foram embora, e eu, além de
lanchar, ainda estou recebendo ensinamentos extras. Não sei como lhe agradecer.
- Não
precisa. É que você foi tão chorona que senti vontade de dizer-lhe que não precisa
sofrer e pode modificar sua vida.
- Só o
tempo em que passei aqui já me deixou muito melhor.
Jacira
levantou-se e continuou:
- Obrigada
pelo lanche e pelas boas palavras.
- Espero
que volte no próximo sábado e não fique fazendo luxo.
Jacira
corou:
- Não
vou perder a próxima aula de jeito nenhum. Virei ainda que seja com o mesmo
vestido.
- Ótimo.
Ela
despediu-se e saiu. Sentia-se alegre, valorizada e leve.
Conhecera pessoas
agradáveis, aprendera coisas novas. As palavras de Ernesto não lhe saíam do
pensamento.
Será
que apenas mudando o modo de pensar, ficando mais otimista, sua vida mudaria?
Essa
ideia lhe
parecia um tanto fantasiosa, mas por outro lado, lembrou-se da mãe, que
reclamava e criticava tudo de que ela gostava. Isso sempre lhe parecera
injusto e exagerado. Apesar de dizer-se doente, Geni alimentava-se muito bem,
tinha cores saudáveis.
Pela
primeira vez perguntou-se: Por que ela fazia isso? Apesar das dificuldades
financeiras, não lhe faltava o essencial, dava até para ela comprar as
revistas de que tanto gostava.
Já o
pai não aceitava o fato de não ser mais o operário especializado, mestre na
fábrica, e preferia ficar desempregado, insatisfeito e infeliz a deixar o orgulho
de lado e trabalhar no que lhe era possível.
Se
eles mudassem o modo de pensar, talvez a família pudesse desfrutar de mais
conforto e paz e ela não precisaria fazer tanto esforço para pagar as contas.
Teria mais dinheiro para cuidar de sua aparência e ser mais feliz.
Agora
que provara o prazer de ver-se mais bonita e arrumada, despertando admiração,
desejava continuar se cuidando.
Quando
desceu do ônibus foi caminhando e, ao chegar na esquina de sua casa, viu Nelson
parado a sua espera. Vendo-a, ele aproximou-se dizendo:
- Estava
me perguntando se você estava em casa ou não. Eu ia tocar a campainha para
perguntar.
Jacira
assustou-se:
- Não
faça isso! Minha mãe iria ficar muito zangada.
- Por
quê? Eu me apresentaria e pronto, Jacira respirou fundo e, olhando o rosto
dele, esclareceu:
- Meus
pais são à moda antiga. Nao permitem
que eu tenha amizade com rapazes.
Foi
a vez de ele se admirar:
- Como
assim? Você não me parece menor de idade.
- Não
sou mesmo. Mas fui criada dessa forma. Nunca tive um namorado.
- Não
acredito! Está brincando comigo?
- Não.
Foi por esse motivo que no outro dia não o deixei me acompanhar até em casa.
Por que veio até aqui?
- Tive
vontade de vê-la. Hoje é sábado e pensei que podíamos sair, ir jantar, ao
cinema, fazer o que desejasse.
- Não
vou poder. Por ter saído esta tarde, minha mãe já vai brigar comigo. Não vou
nem falar em sair. Depois, eu não costumo sair à noite, ainda mais com homens.
- Por
quê? Sou um homem bem-intencionado. Se não fosse não viria até sua casa. Estou
interessado em você de verdade. Gostei do seu jeito. Você não gostou de ter me
conhecido?
Apanhada
de surpresa, Jacira não soube o que dizer. Ele era um homem bonito, elegante,
ela se sentira muito contente por seu interesse. Mas tinha vergonha de dizer
a verdade. Ele podia pensar que ela era uma moça fácil.
- Não
se trata disso. É que hoje eu fiquei fora toda a tarde. Já escureceu e eu tenho
de ir para casa. Minha mãe não tem saúde e eu a ajudo nas tarefas domésticas.
- Você
não se interessou por mim como eu por você. Se tivesse gostado de mim, faria
tudo para sair comigo, ainda que fosse para darmos uma volta. Não vou insistir.
Jacira sentiu-se angustiada. Era-lhe difícil reconhecer que sentia
vontade de ir e ao mesmo tempo medo de que ele, quando a conhecesse melhor,
reconhecesse que ela não merecia seu interesse.
Indecisa, ela sorriu
tentando desfazer a impressão que causara e disse:
- Não é bem assim. Você não sabe os problemas que tenho em casa. Mas se quiser,
podemos dar uma volta agora, conversar um pouco e sair outro dia.
Seus olhos brilharam e ele sorriu mostrando dentes
alvos e bem distribuídos.
- Ainda bem que mudou de ideia.
Foram andando lentamente, lado a lado até a praça, sentaram-se em um banco. Nelson segurou a mão dela e comentou:
- Está fria.
- É a primeira vez que saio
com um homem.
- Nos dias de hoje, é
difícil de acreditar.
- Vamos falar de outra
coisa. Falei de minha família, mas você ainda não falou da sua.
- Não tenho muito para
contar. Meus pais moram em Minas, tenho uma irmã casada que vive lá também.
Quanto a mim...
Ele fez uma pausa, escolhendo as palavras para dizer,
depois decidiu-se:
- Eu sou separado e tenho
uma filha de quinze anos. Jacira sobressaltou-se:
- Quer dizer que você é
casado?
- Fui casado. Mas há cinco anos nos separamos. Não deu certo.
Jacira levantou-se:
- Preciso ir. Está na hora.
Ele segurou-a pelo braço e pediu:
- Sente-se,
por favor.
Jacira obedeceu. Ele
continuou:
- Quer ir embora porque sou separado e tenho uma
filha?
- Não... Não tenho nada a ver com sua vida.
- Eu gostaria que você
soubesse mais a meu respeito.
- Não
e por esse motivo... E que preciso ir mesmo. Está tarde, minha mãe deve estar
preocupada.
Ela
levantou-se de novo e desta vez ele fez o mesmo. Jacira estendeu a mão dizendo:
- Boa
noite.
Ele
olhou-a, passou o braço pela cintura dela, apertou-a de encontro ao peito e
beijou-a demoradamente nos
lábios.
Jacira
sentiu as pernas tremerem e seu coração disparou. Quando ele a soltou não soube
o que dizer:
- Desde
o nosso primeiro encontro senti vontade de fazer isso. Sei que não vai me
telefonar, mas amanhã à tarde passarei aqui para vê-la.
Jacira
sentia as pernas bambas, estava chocada. Pela primeira vez ela fora beijada!
Ainda sentia os braços dele em sua cintura e o calor do seu corpo junto ao seu.
- Você
precisa ir mesmo?
Essa
pergunta teve o dom de trazê-la à realidade:
- Sim.
Ela deu as costas e começou a andar. Nelson a
seguiu:
- Vou
acompanhá-la até sua casa.
- Até a
esquina.
Foram
andando em silêncio, de mãos dadas. Na esquina da casa dela, pararam. Ele levou
a mão dela aos lábios, depois disse:
- Foi
muito bom conhecê-la.
- Boa
noite!
Foi
o que ela conseguiu dizer, afastando-se quase correndo, sem olhar para trás
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