sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Capítulo 7 


No sábado, diante do guarda-roupas, Jacira olhava preocupada para os vestidos pendurados. Ela queria muito ir à casa de Ernesto assistir às aulas. Depois da ida ao cabeleireiro, ficara motivada. Ainda bem que tinha o outro vestido que Margarida reformara. 

Re­solveu colocá-lo.


Nos últimos dias, à noite, fechada em seu quarto, ela treinara maquiar-se, e estava contente com o resultado.


Arrumou-se com cuidado, fez uma maquiagem leve, penteou os cabelos, olhou-se no espelho minu­ciosamente. Sorriu satisfeita. A sensação de estar ele­gante, de sentir-se mais bonita, era nova, mas muito agradável. Sentia vontade de cantar, rir, voar.


Apanhou a bolsa e saiu. Ao passar pela sala onde Aristides assistia ao programa esportivo, e Geni lia uma de suas revistas favoritas, estremeceu quando a voz estridente de sua mãe gritou:


- Aonde vai a esta hora da tarde vestida desse jeito?

- Vou passear.


- Tide! Você não fala nada? Ela pintou a cara de novo e vestiu essa roupa apertada.


Aristides olhou contrariado e, sem prestar muita atenção, resmungou:


- O que está acontecendo aqui? Um homem velho, cansado não pode assistir ao seu programa favorito porque vocês duas não se entendem? Jacira, trate de obedecer sua mãe. 
 

Jacira sequer respondeu, virou as costas e saiu antes que Geni começasse a cena de sempre. Na rua, tratou de distanciar-se rapidamente, com medo de que sua mãe saísse na rua para repreendê-la, como já fizera algumas vezes.


Felizmente o ônibus estava chegando e ela con­seguiu embarcar. Chegou à casa de Ernesto dez minutos antes do horário que ele havia marcado. O porteiro a reconheceu e abriu o portão para que ela entrasse.

Várias pessoas conversando, rindo, entraram também. Estavam bem-vestidas e Jacira sentiu re­ceio de não estar vestida de acordo, um aperto no peito a incomodou.

Pensou em ir embora, mas nesse momento Er­nesto estava no hall conversando com algumas pes­soas e, vendo-a, aproximou-se sorrindo:

-  Que bom vê-la! Eu estava aqui na entrada pen­sando se você viria.

-  Como vai? - indagou ela apertando a mão que ele lhe estendia.

- Bem, e você está cada dia melhor. Esse pen­teado fica-lhe muito bem.

Jacira sentiu a opressão desaparecer:

- Obrigada.

- Veio assistir a aula de hoje? Estamos iniciando uma turma nova.
Ela hesitou um pouco, depois disse:

- Não sei. Antes preciso perguntar-lhe... - calou-se embaraçada.
Ele consultou o relógio e respondeu:

- Temos alguns minutos. Vamos a minha sala. Uma vez sentados um diante do outro, Ernesto
disse:

- Pode falar. Quais são suas dúvidas?

- Aqui é um ambiente fino, de pessoas bem-ves-tidas, não sou desse meio. Só tenho este vestido e assim mesmo porque Margarida me deu de presente.

Ele fixou seus olhos e perguntou:

-  Você sente vontade de assistir às aulas?

-  Sinto. Conversar com você me fez muito bem. Deu-me coragem para enfrentar minha família e mudar as coisas que me deprimiam.

-  Nesse caso deve fazer o curso. Estou certo de que vai aproveitar muito. Você está no ponto certo para conseguir transformar sua vida, conquistando o que deseja.

-  As pessoas podem não gostar de me ver aqui.

-  Se você não deixar o orgulho de lado e lutar pelo que deseja, não poderei fazer nada por você.

-  Não é por orgulho.

-  É sim. Você se julga menos do que essas pes­soas e receia enfrentar uma convivência temendo co­meter erros e ser criticada. 

Entretanto, você não é menos nem mais do que ninguém.

-  Eu sei o meu lugar. Sou uma operária pobre e sem instrução.

-  As pessoas valem pelas qualidades que têm e não pela classe social em que se colocaram.


-  Eu nasci assim, se pudesse escolher seria di­ferente.

-  Você pode escolher. É livre para decidir o que deseja ser e transformar sua vida.

Jacira meneou a cabeça negativamente:

- Não creio. Quem nasce pobre não tem escolha. É trabalhar no que puder e resignar-se com o que tem.

Ernesto sorriu e respondeu:

- Vejo que está iludida. Está na hora da aula. Não temos mais tempo. Vamos. Depois conversaremos.

Um pouco hesitante, Jacira o acompanhou. Ao en­trarem na sala lotada, o burburinho cessou e Ernesto colocou mais uma cadeira ao lado da primeira fileira, pedindo a Jacira que se sentasse.

Depois, apanhou o microfone, deu as boas-vindas a todos e começou a falar:

- Todos desejamos conquistar a felicidade, mas a maioria tem dificuldade de encontrar o caminho. Depois de anos de estudos sobre o comportamento humano, fazendo vivências com pessoas, descobri que a vida é muito mais do que parece e que nossa importância como pessoa é muito maior do que eu pensava.

Ele fez ligeira pausa passando os olhos pelas pes­soas que o ouviam com atenção e continuou:

- Tornei-me espiritualista. Descobri que nosso espírito já viveu outras vidas aqui na Terra. Ao re­nascer, ele recebe um novo corpo para continuar a aprendizagem que visa o amadurecimento do seu espírito. Quando esse corpo morre, o espírito volta para seu lugar de origem, em outras dimensões do Universo. Em nosso inconsciente, guardamos todas as experiências de todas as nossas vidas na Terra. 

Quando estamos aqui, não nos lembramos delas para ficarmos livres do passado, embora ele discretamente continue nos influenciando.
Os olhos de Ernesto brilhavam e sua voz agra­dável tinha a firmeza da sua crença. Fez breve silêncio, depois continuou:

- No meu conceito, a vida existe de forma plena e verdadeira em nosso espírito, o condutor absoluto da nossa vida. Vocês vieram para um curso de autoajuda, e eu estou me colocando, porquanto quem deseja me­lhorar seu mundo interior não pode ignorar essa base. Se tem alguém aqui que não concorda, pode retirar-se e apanhar seu dinheiro de volta.

Ele esperou alguns minutos e como ninguém fez menção de sair, ele continuou:

- Muito bem, podemos então começar nossa aula.

Jacira ouvira tudo com atenção, envolvida pelo olhar Ernesto e apesar de nunca ter pensado nesses as­suntos, sentiu que tudo fazia sentido em seu coração.

Durante uma hora, Ernesto discorreu sobre pro­blemas psicológicos determinantes de resultados ne­gativos e falta de reconhecimento das pessoas na apreciação e utilização de suas qualidades como causa da infelicidade. Por fim disse:


- Ao finalizar, peço-lhes que analisem todos os fatos da vida sob a ótica espiritual.

Algumas pessoas levantaram a mão desejando fazer perguntas, mas Ernesto disse:

- Na próxima aula lhes direi como fazer isso. Até a próxima semana.

Sob os aplausos entusiasmados dos alunos, Er­nesto deixou a sala. Jacira estava encantada. O tempo passara rápido e ela notara que muitas crenças que ele disse serem erradas, ela tinha cultivado a vida inteira.

Deixou a sala e no corredor viu Ernesto rodeado por algumas pessoas conversando. Queria agradecer e despedir-se, mas não querendo interrompê-los foi passando discretamente, porém ele a chamou:

- Jacira, espere.

Ela parou. Ele continuou:

-  Desejo apresentar-lhe algumas pessoas. Ela aproximou-se e ele as apresentou:

-  Jacira, esta é Marina, José, Marcos e Sônia.

- Muito prazer, Jacira - respondeu ela um pouco tímida. Mas eles um a um abraçaram-na, dando-lhe um beijinho na face.

Jacira sentiu uma onda de prazer invadir seu co­ração. Eles a cumprimentaram com carinho e alegria.

-  Jacira está começando hoje - esclareceu Ernesto.

-  Nós já estamos estudando aqui há dois anos - disse Marina.

- Eu mudei minha vida depois que vim para cá - afirmou José. - 

Vivia deprimido, triste, de mal com a vida. Agora sou outra pessoa.

- Aconteceu com todos nós - garantiu Sônia sorrindo.

Conversaram alguns minutos mais, depois se des­pediram. Vendo-se a sós com Jacira, Ernesto disse:

- Venha tomar um café comigo. Vamos conversar. Quero saber o que você achou.

Ela acompanhou-o até a sala e sentaram-se à mesa onde já havia café, leite, biscoitos e algumas xícaras.

Ele puxou a cadeira para que ela se sentasse e sentou-se em seguida. Serviu-os de café com leite e depois disse:

- E então? O que sentiu durante a aula? Jacira pensou um pouco, depois respondeu:

-  Eu me senti muito bem. Principalmente quando disse que é espiritualista. Sempre acreditei que a vida continua após a morte do corpo físico, mas não co­nheço essa religião.

-  Não é uma religião. A crença na vida após a morte e na reencarnação são naturais, fazem parte da vida.

-  Se fossem naturais as pessoas não teriam tanto medo de morrer.


-  A maioria se recusa a estudar o assunto por preconceito. De tanto dramatizar a morte, evitam tudo o que se relaciona a ela. É ilusão, uma vez que todos morreremos um dia.

- Só em falar nisso fico toda arrepiada! Ernesto riu gostosamente e continuou:

-  Se você soubesse o que acontece depois não diria isso. Lembra-se da outra vez que esteve aqui?

-  Eu dormi e tive um sonho lindo. Nunca mais me esqueci.

-  Eu lhe falei que não foi sonho. Você foi real­mente a um lugar fora deste mundo.

-  Você me disse que nós podemos nascer aqui vá­rias vezes. Ainda não entendi bem como pode ser isso.

- Mais tarde compreenderá melhor. Naquela tarde, quando você dormiu, seu espírito saiu do corpo e foi visitar outra dimensão do Universo. É para lá que vamos depois da morte.

- Se isso for verdade, quero morrer agora!

-  Calma. Só vai viver lá se tiver vivido aqui uma vida produtiva e estiver bem.

-  Minha vida é muito ruim. Nesse caso penso que nunca irei para lá.

-  Você está enganada. O que conta não é sua condição social, mas a elevação do seu espírito. Para conquistar isso basta procurar se tornar uma pessoa melhor, mais lúcida, mais feliz.

-  Isso é tentador, eu me sentiria muito feliz se pudesse viver lá.
-  Você tem tempo para conquistar essa condição. Tem muitos anos para viver aqui e aprender.

-  É isso que você vai me ensinar?

- Podemos trocar ideias sobre espiritualidade porque, como eu disse, sem essa base fica mais difícil conquistar o equilíbrio. 
Tentarei passar para você o que sei sobre o assunto, principalmente por saber que você tem sensibilidade e vai entender. Mas nas aulas falo mais sobre o lado psicológico.

-  Por que você disse hoje que as pessoas que não concordassem poderiam sair?

-  Por que as pessoas são livres e eu não estou pregando nenhuma religião, mais minhas palavras re­fletem as pesquisas que tenho feito ao longo dos anos e comprovam essa realidade. Acho que estou falando muito e não desejo impor minhas ideias. É que me entusiasmo quando falo do meu trabalho.

-  Eu ficaria o dia inteiro ouvindo o que você diz. Sinto que está me fazendo bem. Penso que sou eu que estou abusando. As pessoas foram embora, e eu, além de lanchar, ainda estou recebendo ensinamentos extras. Não sei como lhe agradecer.

-  Não precisa. É que você foi tão chorona que senti vontade de dizer-lhe que não precisa sofrer e pode modificar sua vida.

-  Só o tempo em que passei aqui já me deixou muito melhor.
Jacira levantou-se e continuou:

- Obrigada pelo lanche e pelas boas palavras.

-  Espero que volte no próximo sábado e não fique fazendo luxo.
Jacira corou:

-  Não vou perder a próxima aula de jeito nenhum. Virei ainda que seja com o mesmo vestido.

-  Ótimo.

Ela despediu-se e saiu. Sentia-se alegre, valori­zada e leve. 

Conhecera pessoas agradáveis, apren­dera coisas novas. As palavras de Ernesto não lhe saíam do pensamento.

Será que apenas mudando o modo de pensar, fi­cando mais otimista, sua vida mudaria?

Essa ideia lhe parecia um tanto fantasiosa, mas por outro lado, lembrou-se da mãe, que reclamava e criticava tudo de que ela gostava. Isso sempre lhe pa­recera injusto e exagerado. Apesar de dizer-se doente, Geni alimentava-se muito bem, tinha cores saudáveis.

Pela primeira vez perguntou-se: Por que ela fazia isso? Apesar das dificuldades financeiras, não lhe fal­tava o essencial, dava até para ela comprar as revistas de que tanto gostava.

Já o pai não aceitava o fato de não ser mais o operário especializado, mestre na fábrica, e preferia ficar desempregado, insatisfeito e infeliz a deixar o or­gulho de lado e trabalhar no que lhe era possível.

Se eles mudassem o modo de pensar, talvez a família pudesse desfrutar de mais conforto e paz e ela não precisaria fazer tanto esforço para pagar as contas. Teria mais dinheiro para cuidar de sua apa­rência e ser mais feliz.

Agora que provara o prazer de ver-se mais bonita e arrumada, despertando admiração, desejava conti­nuar se cuidando.

Quando desceu do ônibus foi caminhando e, ao chegar na esquina de sua casa, viu Nelson parado a sua espera. Vendo-a, ele aproximou-se dizendo:

- Estava me perguntando se você estava em casa ou não. Eu ia tocar a campainha para perguntar.

Jacira assustou-se:

- Não faça isso! Minha mãe iria ficar muito zangada.

- Por quê? Eu me apresentaria e pronto, Jacira respirou fundo e, olhando o rosto dele, es­clareceu:

- Meus pais são à moda antiga. Nao permitem que eu tenha amizade com rapazes.

Foi a vez de ele se admirar:

-  Como assim? Você não me parece menor de idade.

-  Não sou mesmo. Mas fui criada dessa forma. Nunca tive um namorado.

-  Não acredito! Está brincando comigo?
 
-  Não. Foi por esse motivo que no outro dia não o deixei me acompanhar até em casa. Por que veio até aqui?

-  Tive vontade de vê-la. Hoje é sábado e pensei que podíamos sair, ir jantar, ao cinema, fazer o que desejasse.

-  Não vou poder. Por ter saído esta tarde, minha mãe já vai brigar comigo. Não vou nem falar em sair. Depois, eu não costumo sair à noite, ainda mais com homens.

-  Por quê? Sou um homem bem-intencionado. Se não fosse não viria até sua casa. Estou interessado em você de verdade. Gostei do seu jeito. Você não gostou de ter me conhecido?

Apanhada de surpresa, Jacira não soube o que dizer. Ele era um homem bonito, elegante, ela se sen­tira muito contente por seu interesse. Mas tinha ver­gonha de dizer a verdade. Ele podia pensar que ela era uma moça fácil.

-  Não se trata disso. É que hoje eu fiquei fora toda a tarde. Já escureceu e eu tenho de ir para casa. Minha mãe não tem saúde e eu a ajudo nas tarefas domésticas.

-  Você não se interessou por mim como eu por você. Se tivesse gostado de mim, faria tudo para sair comigo, ainda que fosse para darmos uma volta. Não vou insistir.

Jacira sentiu-se angustiada. Era-lhe difícil reco­nhecer que sentia vontade de ir e ao mesmo tempo medo de que ele, quando a conhecesse melhor, reco­nhecesse que ela não merecia seu interesse.

Indecisa, ela sorriu tentando desfazer a impressão que causara e disse:

- Não é bem assim. Você não sabe os problemas que tenho em casa. Mas se quiser, podemos dar uma volta agora, conversar um pouco e sair outro dia.

Seus olhos brilharam e ele sorriu mostrando dentes alvos e bem distribuídos.

- Ainda bem que mudou de ideia.

Foram andando lentamente, lado a lado até a praça, sentaram-se em um banco. Nelson segurou a mão dela e comentou:
-  Está fria.

-  É a primeira vez que saio com um homem.

-  Nos dias de hoje, é difícil de acreditar.

-  Vamos falar de outra coisa. Falei de minha fa­mília, mas você ainda não falou da sua.

-  Não tenho muito para contar. Meus pais moram em Minas, tenho uma irmã casada que vive lá também. Quanto a mim...

Ele fez uma pausa, escolhendo as palavras para dizer, depois decidiu-se:

-   Eu sou separado e tenho uma filha de quinze anos. Jacira sobressaltou-se:

-   Quer dizer que você é casado?

- Fui casado. Mas há cinco anos nos separamos. Não deu certo.
Jacira levantou-se: 
 

- Preciso ir. Está na hora.


Ele segurou-a pelo braço e pediu:


- Sente-se, por favor.


Jacira obedeceu. Ele continuou:


- Quer ir embora porque sou separado e tenho uma filha?


- Não... Não tenho nada a ver com sua vida.


- Eu gostaria que você soubesse mais a meu res­peito.


-  Não e por esse motivo... E que preciso ir mesmo. Está tarde, minha mãe deve estar preocupada.


Ela levantou-se de novo e desta vez ele fez o mesmo. Jacira estendeu a mão dizendo:

- Boa noite.


Ele olhou-a, passou o braço pela cintura dela, apertou-a de encontro ao peito e beijou-a demorada­mente nos lábios.


Jacira sentiu as pernas tremerem e seu coração disparou. Quando ele a soltou não soube o que dizer:


- Desde o nosso primeiro encontro senti von­tade de fazer isso. Sei que não vai me telefonar, mas amanhã à tarde passarei aqui para vê-la.


Jacira sentia as pernas bambas, estava chocada. Pela primeira vez ela fora beijada! Ainda sentia os braços dele em sua cintura e o calor do seu corpo junto ao seu.


- Você precisa ir mesmo?


Essa pergunta teve o dom de trazê-la à realidade:

- Sim.


Ela deu as costas e começou a andar. Nelson a seguiu:


-  Vou acompanhá-la até sua casa.


-  Até a esquina.


Foram andando em silêncio, de mãos dadas. Na esquina da casa dela, pararam. Ele levou a mão dela aos lábios, depois disse:


-  Foi muito bom conhecê-la.


-  Boa noite!


Foi o que ela conseguiu dizer, afastando-se quase correndo, sem olhar para trás

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