Jacira entrou em casa e, sem dar atenção às palavras de Geni e ao protesto do pai que queria ver televisão em silêncio, correu a fechar-se no quarto.
Sentou-se na
cama tomando fôlego.
Mas
agora que havia acontecido, não entendia suas emoções, muito diferentes das que
imaginara.
Sentia-se atraÃda por Nelson, mas não podia
dizer que era amor. Em sua imaginação o amor deveria despertar uma sensação inebriante, o que não aconteceu. O medo
foi mais forte do que qualquer sentimento.
Nelson
parecia estar gostando dela. Como ele poderia gostar de uma mulher feia,
pobre, inexperiente?
Era
difÃcil de acreditar. Geni batia
insistentemente na porta do quarto gritando irritada:
-
Jacira, abra esta porta! Quero saber onde esteve o dia inteiro.
Ela
não tinha nenhuma vontade de abrir. Não estava disposta a ouvir as queixas e
reclamações da mãe. Precisava pensar melhor sobre o que estava lhe acontecendo.
Nelson queria namorá-la, deixou esse ponto bem claro, mas ela não sabia como
seria isso.
Em
dado momento, pareceu-lhe ouvir a voz da mãe dizendo:
- Vai lavar essa cara. Você parece uma prostituta! O
que diria ela se soubesse que ela estava saindo
com
um homem casado? Mesmo separado, na cabeça de Geni e de Aristides ele continuava casado.
Revendo
os momentos que tivera com Nelson desde que o conhecera, sentia que ele não a julgara
uma mulher de vida fácil, a havia tratado com respeito. Além disso, era um
homem bonito, elegante.
Revendo
a figura de Nelson, Jacira sorriu satisfeita. Ninguém mais poderia chamá-la de
solteirona, principalmente
os pais que tinham prazer em lembrar que ela nunca encontrara alguém que a
amasse.
Por
que em vez de incentivá-la a cuidar da aparência eles faziam tudo para
deixá-la sentindo-se incapaz e feia? Os pais devem amar os filhos, mas os seus
não desejavam sua felicidade.
Geni não desistia de bater, e Jacira resolveu enfrentá-la.
Abriu a porta, a mãe olhou-a, examinando-a de cima a baixo.
- Pintada
desse jeito e com esse vestido apertado, curto, você não parece uma moça de
famÃlia.
Jacira
olhou-a friamente procurando controlar a irritação:
- Essa
é a sua opinião. Mas os outros não pensam assim.
- Eu
logo vi que você andava saindo com pessoas que querem destruir nossa famÃlia!
Onde já se viu fazer isso comigo, que não faço outra coisa senão ser uma mãe
dedicada?
- Mãe,
estou cansada, não quero discutir. Vou dormir.
- Não
passou a roupa da semana nem lavou a louça do jantar. Eu tive de lavar a do
almoço.
- Você
deveria ter lavado também a do jantar. Por que fica o dia todo em casa lendo
revistas e larga tudo para eu fazer?
Geni colocou a mão na testa e recuou um passo como se
tivesse sido ferida por uma bala. Seus olhos brilhavam rancorosos e ela
esforçava-se para derramar algumas lágrimas.
Jacira
percebeu claramente que ela estava fingindo.
- Tide!
Venha depressa! Sua filha está me maltratando. Estou me sentindo mal, acho que
vou cair.
Jacira
a olhava sem se comover. Nunca aquela atitude lhe parecera tão falsa.
- Deixe
o papai em paz. Agora,
vou fechar a porta. Estou cansada e quero dormir.
Geni cambaleou, mas Jacira fechou a porta, passou a chave. Geni soluçava alto e Aristides foi
até ela contrariado. Por que ela tinha de armar aquela cena no pedaço mais
emocionante do filme?
Interessado
em resolver logo o assunto e voltar para a sala, ele segurou Geni, que teimava em fingir que
estava perdendo os sentidos.
- Viu
o que ela fez comigo? Fechou a porta na minha cara. Filha cruel, malvada, não
merece os sacrifÃcios que fazemos por ela.
- Chega,
Geni. Vamos
descer. Jacira não está bem. Ela quer dormir, deixe-a descansar.
- E
eu? Terei de arrumar a cozinha toda? E a roupa para passar vai ficar. Logo, não
teremos nenhuma peça para trocar.
Sem fazer caso de suas palavras, Aristides foi quase a arrastando para
a sala.
- Sente-se
e relaxe. Amanhã é domingo e ela terá o dia inteiro para dar uma ordem na casa.
- Você
agora está do lado dela. Ela me afronta e você nem liga.
Aristides perdeu
a costumeira paciência:
- Você
está ficando muito implicante.
Trate de se calar que eu quero ver o filme.
Sem
dar importância aos soluços da mulher, ele sentou-se e dispôs-se prazerosamente
a continuar vendo o filme.
Em
seu quarto, Jacira remexia-se na cama, nervosa, procurando analisar o que
sentia, confusa e emocionada. Havia momentos que lhe parecia estar mais bonita,
sendo admirada, querida, mas havia outros que lhe parecia estar ouvindo a voz
da mãe depreciando suas atitudes.
Depois de tantos anos ouvindo-a repetir as
mesmas coisas, era-lhe difÃcil acreditar que pudesse encontrar alguém que a
amasse de verdade. Quem poderia amar uma mulher feia, pobre e inexperiente como
ela?
Nesse conflito ela quase não dormiu naquela
noite. Mas, apesar disso, na manhã seguinte se levantou cedo, seus pensamentos
tumultuados não a deixavam relaxar.
Eram
sete horas e seus pais ainda dormiam. Foi à padaria, comprou pão, fez café,
tomou uma xÃcara com leite, o que a fez recordar-se do encontro com Ernesto e
de suas palavras animadoras.
Ele
tinha cultura, era um professor, deveria saber o que estava dizendo. Afirmara
que ela era bonita, tratava-a com respeito e atenção, confiava nela. Pensando
bem, Ernesto tinha muito mais sabedoria e conhecimento do que seus pais,
pessoas simples e sem cultura. Se ele afirmava que ela tinha condições de
conquistar uma vida melhor, deveria acreditar.
Esse pensamento a deixou mais alegre, renovou
sua disposição. Teve vontade de ir à casa de Margarida para contar-lhe a
novidade e trocar ideias.
Olhando a pia cheia de louças, suspirou.
Antes precisava resolver as coisas em casa. Colocou uma chaleira com água no
fogo e começou a dispor a louça.
Pensando
em acabar logo e ir à casa de Margarida, logo tudo estava em ordem. Foi para o
quartinho passar a roupa da semana.
Geni acordou disposta a não deixar passar as ofensas da
noite anterior, mas quando entrou na cozinha e viu tudo limpo, pão fresco na
mesa e café pronto, procurou por Jacira, vendo-a passando roupa, mudou de ideia.
Decidiu
mostrar abatimento, mas sem brigar. Afinal, ela estava fazendo o serviço.
Passava
do meio-dia quando Jacira terminou o serviço, foi para o quarto e arrumou-se
para sair. Quando ela passou pela sala, Geni não se conteve:
- Vai
sair de novo?
Sem
se perturbar Jacira respondeu:
- Vou
visitar uma amiga.
- Que
amiga? Desde que você arrumou amigas ficou impossÃvel. Não vai almoçar?
- Vai
ficar tarde.
- E a
louça?
- Fica
por sua conta. Já fiz a minha parte por hoje. E antes que ela respondesse,
Jacira saiu e em
poucos
segundos estava na parada de ônibus.
Ao
tocar a campainha da casa de Margarida, Marinho correu para abrir o portão,
abraçando-a com alegria.
Jacira
sorriu e entregou-lhe o saco de balas que comprara no caminho. Atrás dele,
Margarida sorrindo, tornou:
- Estava
pensando em você! Que bom que veio! Como você está bonita!
- Não
diga isso que eu posso começar a acreditar. Conversando animadas, as duas
entraram.
- Hoje
eu fiz para o almoço um frango recheado com farofa, como minha mãe fazia.
Acabei de tirar do forno, ficou uma beleza!
Marinho estava com vontade e eu até
pensei: devia ter chamado Jacira para almoçar.
- Desculpe
ter vindo na hora do almoço, mas aconteceu uma coisa e eu estava impaciente para
lhe contar.
- Você
sabe que na minha casa não precisa de cerimônia. Você é minha melhor amiga.
Fico feliz quando vem aqui.
A
mesa estava posta e Margarida acrescentou mais um prato.
Marinho estava em
volta ansioso para comer o frango e, conforme Jacira lhe pedira, deixara
para chupar as balas depois do almoço.
Margarida colocou as
travessas na mesa, sentaram-se,
ela
serviu o filho, depois perguntou:
- Fale, o que você tem para
me contar? Seus olhos brilham quando fala nisso. Estou ansiosa para saber.
- Vamos comer. Depois
conversaremos. É um assunto muito pessoal.
Margarida segurou a
curiosidade. Quando terminaram de comer, Marinho foi brincar e Jacira contou
tudo que lhe acontecera.
Margarida vibrava de alegria. Quando ela terminou,
disse entusiasmada:
- Eu sabia que você logo iria encontrar alguém. Como
é ele?
Bonito?
- É alto, forte, moreno, bonito mesmo.
- Além de tudo sabe o que
quer! Deu-lhe um beijo logo no primeiro
dia!
- É isso que me incomoda.
Acha que está certo? Ele não vai pensar que sou uma mulher fácil?
Margarida sacudiu a cabeça
negativamente:
- Nada disso. Os homens gostam de mulher mais
ardente.
- Eu não sou nada disso.
Fiquei morrendo de medo. Margarida riu gostosamente.
- Você começou tarde.
Precisa tirar o atraso.
- Não brinque, Margarida.
Para mim o assunto é muito sério.
- Não leve as coisas tão a
sério. Foi sua primeira experiência. Que tal, gostou?
Jacira hesitou:
- Ainda não sei. Foi uma surpresa, minhas pernas
tremeram, o coração disparou, foi difÃcil segurar o susto.
- Logo você vai perder o medo
e gostar.
- Eu esperava que fosse
diferente, não sei...
- Diferente como?
- Pensava que um beijo fosse me deixar enlevada,
nas alturas, apaixonada, mas naquele momento eu só queria fugir, desaparecer,
ir para casa.
Margarida
olhou-a séria, passou a mão delicadamente acariciando os cabelos da amiga e
respondeu:
- Você
é ingênua como uma criança. Um beijo bem dado pode provocar várias sensações no
corpo. Mas um beijo de amor é muito diferente. Emociona, não dá para explicar
em palavras. Você mal conhece Nelson. Está curiosa de saber como é o namoro,
mas ainda não está apaixonada por ele.
- Será?
Ele é um homem bonito, amável, educado. Eu gosto dele, mas penso: ele não pode
estar sendo sincero. Não sou uma mulher atraente, não sei nem como se namora. O
mais provável é que ele não tenha boas intenções.
- Pensando
assim você pode deixar passar o amor de sua vida. Você é uma boa moça, cheia de
qualidades, bonita, trabalhadora.
Você merece tudo. Não sei se esse Nelson é
digno de você. Para mim, você vale mais do que ele.
- Você
é minha amiga e diz isso para me animar.
Elas continuaram conversando animadas e Margarida
tentava persuadi-la a ver-se de maneira melhor. Estava sendo sincera.
Depois de darem uma ordem na cozinha, Margarida
levou-a para a sala de costura e lá abriu um baú onde tinha alguns cortes de
tecido.
Jacira
comentou:
- Que
lindos. Você tem bom gosto, é muito boa costureira. Não sei por que seu negócio
não deu certo.
- Como
já lhe disse, não sou boa em contas. Atrapalho-me. Precisei trabalhar muito
cedo e fui à escola só até o terceiro ano.
- Eu
consegui tirar o diploma. Mas não tenho a capacidade que você tem de costurar.
- Lamento
ter precisado fechar meu ateliê de costura. Sabe, Jacira, trabalhar por conta
própria é muito Melhor. Na verdade, trabalha-se mais, porém fazemos do nosso
jeito, sem ter ninguém nos controlando.
Jacira
suspirou:
- Quem
me dera poder viver assim! Se eu tivesse uma profissão como a sua, deixaria o
emprego e iria trabalhar por minha conta.
Os olhos de Margarida brilharam e ela colocou
as mãos nos ombros de Jacira, olhando-a firme:
- Se você viesse trabalhar
comigo, eu me animaria a voltar a costurar para fora.
- Eu?!... Não sei costurar.
- Sabe sim. Fazer os moldes,
cortar, montar a roupas, eu sei muito bem. Não tenho medo. E você 1 ótima
ajudante, capricha nos arremates e, além disso, é boa nas contas. Tenho notado
como você controla seus gastos e os de sua famÃlia.
- Trabalhar
com você seria maravilhoso! Mas, será que poderÃamos deixar nossos empregos?
Nós temos despesas. Daria para sustentar duas famÃlias?
- Como
não temos capital, no começo poderemos trabalhar só nos fins de semana. Estou
certa de que quando disser para minhas antigas freguesas que vou voltar a
costurar, elas virão nos procurar.
- Temos
de ter dinheiro para comprar material, tecidos, aviamentos etc. Não teremos
como fazer isso.
- Muitas freguesas trazem os
tecidos, mas se nós pudéssemos fornecer-lhes, o lucro seria muito maior.
GanharÃamos o dobro.
- Infelizmente não temos esse
dinheiro. Mas se elas trouxerem os tecidos, poderemos começar dessa forma.
- Que nada. Sou conhecida nas
lojas porque comprava bastante e às vezes faltava parte do dinheiro, mas eu
sempre pagava tudo direitinho.
Estou certa de que tenho crédito pelo menos para o inÃcio.
- Está falando sério?
- Claro
que estou. Seremos sócias. Com você controlando nosso dinheiro, sei que dará
certo. Não será difÃcil ganharmos mais do que na oficina. Que tal, aceita?
- Ainda
não sei. É bom demais para ser verdade. Mas preciso pensar.
- Pense com carinho. Vamos nos sentar e você já vai
fazer algumas contas. Desta vez quero planejar tudo direito. Vamos fazer uma
lista do que teremos que comprar para reabrir o ateliê,
quanto vamos gastar, o preço
que vamos cobrar e quanto vamos lucrar.
Margarida pegou um
caderno, um lápis e deu-o
a
jacira. Sentaram-se e começaram a trabalhar.
Estavam tão entusiasmadas
que nem viram o tempo passar.
Anoiteceu e Jacira se surpreendeu:
- E tarde! Que horas são?
- Sete e meia.
- Preciso ir.
- Vou esquentar o jantar,
depois você vai.
- Não estou com fome. É
melhor eu ir.
- Está certo. Você pensa e
amanhã ou depois me dá sua resposta.
- Preciso me acostumar com a
ideia. Terei de vir para cá todos os fins de semana. Tenho as aulas do dr.
Ernesto aos sábados.
- Não se preocupe. Podemos
começar apenas aos domingos.
Quando a clientela aumentar pensaremos no que
fazer.
Jacira despediu-se;
durante
o trajeto de volta não conseguia
pensar em outra coisa. Tinha medo de deixar o emprego e o projeto não dar certo. Margarida era boa profissional, mas
será que ganhariam o suficiente para sustentar as duas famÃlias?
Eram oito e meia quando desceu do ônibus perto de sua casa.
Quando chegou na esquina
percebeu que Nelson estava lá, parado, esperando-a. Assim que a viu foi a seu
encontro:
- Faz tempo que a estou
esperando. Eu lhe disse que viria no fim da tarde, esqueceu?
- Desculpe... eu precisei ir
à casa de uma amiga.
- Não queria encontrar-se comigo?
- Não é isso... É que nós
estamos planejando trabalhar juntas.
- Eu estou gostando de você,
mas não sei se sou correspondido.
- Nós
ainda nos conhecemos tão pouco!
- Seja
sincera. Não quero sofrer uma decepção.
- É
que eu nunca saà com ninguém. Não sei como me comportar. Sinto-me confusa.
Nelson
olhou-a admirado. Ela já era mulher feita. Era-lhe difÃcil acreditar que fosse
verdade.
- É a
segunda vez que você me diz isso. Só pode estar brincando comigo.
Ela meneou a cabeça:
- Não!
Esse assunto é para mim muito sério. Já lhe disse isso. Meus pais não me
deixavam sair com amigas e minha mãe sempre diz que os homens só querem nos
usar. De modo que eu até bem pouco tempo atrás só ia para o trabalho e não saÃa
de casa.
- Não
pensei que fosse assim.
- Pois
foi. Mas cansei dessa vida e comecei a mudar. Você é o primeiro homem com quem
eu saà e...
Ela
parou e baixou os olhos. Nelson levantou o queixo dela e perguntou:
- Eu
fui o primeiro homem que a beijou?
- Foi.
Ele
apertou a mão dela e levou-a aos lábios. Depois disse:
- Eu
senti que você era uma mulher muito especial. Ainda acredita que todos os
homens são aproveitadores?
- Não
sei... Estou confusa, um pouco descontrolada, sentindo emoções que não tinha
sentido antes.
- Vamos
nos sentar no banco da praça. Temos muito que conversar.
- É
tarde. Não sei se posso...
- Você
pode. Não é mais criança e se está tentando assumir sua vida, não pode depender
de ninguém, deve tomar suas próprias decisões. O que importa é saber se você
quer conversar mais comigo agora.
Jacira
levantou a cabeça com certa altivez e respondeu:
- Eu
quero, mas estou insegura.
- Nós
nos conhecemos há pouco tempo. Para você confiarem mim, tem de conhecer-me
melhor. Saber como penso, como tem sido a minha vida. Você me contou como tem
sido a sua, desejo fazer a mesma coisa.
- Está
bem. Vamos.
Foram
caminhando até a praça de mãos dadas e sentaram-se em um banco mais discreto.
Jacira sentia-se mais calma. Pelo jeito Nelson não pensava mal dela. Sua mãe
estava errada.
- Tenho
quarenta anos, começou ele, casei-me aos vinte e cinco. Foi um casamento
errado. Eu nasci em
Presidente Prudente, interior de São Paulo. Aos vinte anos,
formei-me em contabilidade, queria progredir. Deixei minha famÃlia, meus pais
e uma irmã e vim para cá.
"Nunca
tinha saÃdo de casa, nos primeiros tempos estranhei muito.
Cheguei a passar
dificuldades porque estava difÃcil conseguir um emprego. Eu não tinha prática
na profissão, então tive de começar como entregador em um escritório.
"Mas
trabalhei com coragem e fui melhorando no trabalho. Conheci Aurora, senti-me
atraÃdo por ela, ca-samo-nos um ano depois. Eu tinha vinte e cinco e ela
dezoito anos."
Nelson fez uma pausa, dava para perceber que
ao recordar essa época de sua vida, ele se entristecia. Seu rosto se contraÃra
penosamente e Jacira, apesar da curiosidade que sentia, disse penalizada:
- Se
você se sente triste quando fala nisso, é melhor falarmos de outra coisa.
- Não.
Eu quero lhe contar mesmo.
- Está
bem, continue...
- Ela me disse que era órfã de
pai e sua mãe morava no Rio de Janeiro. Ela era filha única. Achei estranho que
ela não morasse com a mãe, e estivesse sozinha em São Paulo. Mas ela
disse que tinha vindo trabalhar e como o emprego não tinha dado certo, estava
à procura de outro.
"No
começo nos demos bem, eu notava que ela era um pouco distraÃda, não cuidava bem
da casa, que era pequena, não sabia controlar os gastos e eu fui forçado a
cuidar das nossas despesas para que o salário fosse suficiente.
"Quando
nossa filha nasceu, ela ficou pior, então começaram nossas discussões. Ela
reclamava muito por ter de cuidar da menina, então pediu para a mãe vir
ajudá-la por algum tempo. Eu não a conhecia, ela não viera ao nosso casamento.
Dona Rosa era uma mulher vistosa, arrumava-se de maneira a chamar a atenção e
não gostei do jeito dela desde o primeiro dia.
"Mas como se afeiçoou logo à menina e cuidava dela
com capricho, acabei por aceitá-la. Para encurtar a história, descobri que
Aurora deixava a filha com a mãe e saÃa quase todas as tardes. Ela estava muito
diferente comigo. Tornara-se desagradável, esquivava-se de meus carinhos, isso
tudo despertou minha desconfiança. Num dia, depois do almoço, fingi que ia
trabalhar e fiquei vigiando-a. Nem meia hora depois, ela saiu, muito
bem-arrumada, e eu a segui. Ela tomou um táxi e eu fiz o mesmo. Ela desceu
pouco depois e entrou em um prédio de apartamentos. Entrei atrás, conversei com
o porteiro e por algum dinheiro ele me contou aonde ela ia e com quem, com a
condição de eu ficar calmo e não brigar com o homem:
"-
Sabe como é, se ele descobre que fui eu quem contou, vou perder o emprego.
Tenho mulher e filhos e não posso ficar desempregado. Espere ela sair e vá
brigar com ela quando deixar o prédio. Eu sabia que ela era casada e isso me
incomoda muito.
Prometa que não fará nada a ele. Afinal, não tem culpa, ela é
que fica atrás dele.
"Eu prometi e fiquei sabendo que fazia
mais de três meses que ela ia lá duas vezes por semana. Fiquei cego de raiva.
Fingi que saÃ, mas quando o porteiro entrou na outra sala, entrei rapidamente e
fui até o apartamento. Não bati na porta, fiquei a esperando sair. Eu juro que
se eu tivesse uma arma naquele momento, teria matado os dois."
Ele
passou a mão nos cabelos respirou fundo e continuou:
- Ela
deve ter ficado com muito medo! - comentou Jacira assustada.
- Qual
nada. Ela reagiu, afrontou-me e alguns moradores até abriram a porta para ver o
que estava acontecendo. O porteiro ficou nervoso e pediu que saÃssemos. Só sei
que ela saiu correndo e eu ainda fiquei sem saber bem o que fazer. Sentia
vontade de desaparecer, sumir.
"Deixei o prédio e não sei por quanto
tempo caminhei sem rumo. Eu não podia voltar para casa, mas ao mesmo tempo
pensava em minha filha, a quem eu adorava."
Jacira, comovida, acariciou o braço dele
querendo confortá-lo.
Olhos fixos em um ponto indefinido, rosto
contraÃdo, preso à s lembranças, Nelson continuou falando:
- Era
tarde da noite quando fui para casa. Entrei e não encontrei ninguém. No quarto,
os armários abertos e vazios: Aurora tinha fugido levando minha filha.
"Fiquei
desesperado. Se de um lado senti alÃvio por não ter de vê-la novamente, por
outro fiquei profundamente preocupado. Eu queria minha filha. Não podia
concordar que ela ficasse com a menina depois da cena que presenciei. Para onde
teriam ido?
"Apesar
do adiantado da hora apanhei o telefone e liguei para d. Rosa. Ela
atendeu logo, dizendo que Aurora estava em sua casa com Célia. Respirei
aliviado.
Prometi
a ela que não iria fazer nada contra Aurora, mas que não desejava vê-la nunca
mais."
Nelson
suspirou e ficou calado por alguns instantes, depois continuou:
- Dona
Rosa aconselhou-me que esfriasse a cabeça, descansasse e conversaria comigo no
dia seguinte. Bem, fiz o que ela me pediu, mesmo porque sentia dores pelo
corpo, estava moÃdo. Parecia
que um trem havia passado sobre mim. No dia seguinte, procurei um advogado
para pedir a separação e a guarda de Célia. Consegui provar a traição e, além
do desquite, obtive
a guarda da menina.
Meus pais e minha irmã moram em Presidente Prudente
e minha filha está morando com eles.
- Sua
filha se acostumou com a mudança de vida?
- Melhor
do que eu pensava. Aqui ela vivia mais com a avó do que com a mãe. Meus pais
são amorosos, minha irmã é alegre e está sempre de bem com a vida. Ao lado
deles, Célia melhorou muito.
Ficou mais falante, mais alegre. Vou vê-la uma vez
por mês. Quando chego lá, ela sempre tem muitas coisas para contar. Adora a
escola, tem amigas, enfim, a melhor coisa em tudo isso foi que ela está muito
bem.
- E
Aurora, ainda mora em São
Paulo?
- Não
sei. Depois de formalizarmos o desquite, nunca mais a vi.
Jacira estava comovida. Sentia que aquela confissão
derretera a barreira que existia entre eles. Com prazer, enfiou o braço no dele
que, sentindo-se compreendido, segurou a mão dela levando-a aos lábios.
Jacira
sentia que estavam se conhecendo, que Nelson era um homem sensÃvel, bom,
querendo esquecer o passado e reconstruir sua vida.
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