sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Capítulo 8
Jacira entrou em casa e, sem dar atenção às pa­lavras de Geni e ao protesto do pai que queria ver televisão em silêncio, correu a fechar-se no quarto. 

Sentou-se na cama tomando fôlego.

Ela fora beijada pela primeira vez! O inesperado despertara emoções desencontradas, que não conse­guia definir. Em seus devaneios da juventude muitas vezes imaginara como seria seu primeiro beijo de amor. 
 


Mas agora que havia acontecido, não entendia suas emoções, muito diferentes das que imaginara.


Sentia-se atraída por Nelson, mas não podia dizer que era amor. Em sua imaginação o amor deveria des­pertar uma sensação inebriante, o que não aconteceu. O medo foi mais forte do que qualquer sentimento.


Nelson parecia estar gostando dela. Como ele po­deria gostar de uma mulher feia, pobre, inexperiente?

Era difícil de acreditar. Geni batia insistentemente na porta do quarto gritando irritada:

- Jacira, abra esta porta! Quero saber onde es­teve o dia inteiro.

Ela não tinha nenhuma vontade de abrir. Não estava disposta a ouvir as queixas e reclamações da mãe. Precisava pensar melhor sobre o que estava lhe acontecendo. Nelson queria namorá-la, deixou esse ponto bem claro, mas ela não sabia como seria isso.
Em dado momento, pareceu-lhe ouvir a voz da mãe dizendo:

- Vai lavar essa cara. Você parece uma prostituta! O que diria ela se soubesse que ela estava saindo
com um homem casado? Mesmo separado, na cabeça de Geni e de Aristides ele continuava casado.

Revendo os momentos que tivera com Nelson desde que o conhecera, sentia que ele não a julgara uma mulher de vida fácil, a havia tratado com res­peito. Além disso, era um homem bonito, elegante.

Revendo a figura de Nelson, Jacira sorriu satis­feita. Ninguém mais poderia chamá-la de solteirona, principalmente os pais que tinham prazer em lembrar que ela nunca encontrara alguém que a amasse.

Por que em vez de incentivá-la a cuidar da apa­rência eles faziam tudo para deixá-la sentindo-se in­capaz e feia? Os pais devem amar os filhos, mas os seus não desejavam sua felicidade.

Geni não desistia de bater, e Jacira resolveu en­frentá-la. Abriu a porta, a mãe olhou-a, examinando-a de cima a baixo.

- Pintada desse jeito e com esse vestido aper­tado, curto, você não parece uma moça de família.

Jacira olhou-a friamente procurando controlar a irritação:

-  Essa é a sua opinião. Mas os outros não pensam assim.

-  Eu logo vi que você andava saindo com pes­soas que querem destruir nossa família! Onde já se viu fazer isso comigo, que não faço outra coisa senão ser uma mãe dedicada?

- Mãe, estou cansada, não quero discutir. Vou dormir.

- Não passou a roupa da semana nem lavou a louça do jantar. Eu tive de lavar a do almoço.

- Você deveria ter lavado também a do jantar. Por que fica o dia todo em casa lendo revistas e larga tudo para eu fazer?


Geni colocou a mão na testa e recuou um passo como se tivesse sido ferida por uma bala. Seus olhos brilhavam rancorosos e ela esforçava-se para derramar algumas lágrimas.


Jacira percebeu claramente que ela estava fingindo.


- Tide! Venha depressa! Sua filha está me mal­tratando. Estou me sentindo mal, acho que vou cair.

Jacira a olhava sem se comover. Nunca aquela atitude lhe parecera tão falsa.

- Deixe o papai em paz. Agora, vou fechar a porta. Estou cansada e quero dormir.

Geni cambaleou, mas Jacira fechou a porta, passou a chave. Geni soluçava alto e Aristides foi até ela con­trariado. Por que ela tinha de armar aquela cena no pedaço mais emocionante do filme?

Interessado em resolver logo o assunto e voltar para a sala, ele segurou Geni, que teimava em fingir que estava perdendo os sentidos.

- Viu o que ela fez comigo? Fechou a porta na minha cara. Filha cruel, malvada, não merece os sa­crifícios que fazemos por ela.

-  Chega, Geni. Vamos descer. Jacira não está bem. Ela quer dormir, deixe-a descansar.

-  E eu? Terei de arrumar a cozinha toda? E a roupa para passar vai ficar. Logo, não teremos nenhuma peça para trocar.

Sem fazer caso de suas palavras, Aristides foi quase a arrastando para a sala.

-  Sente-se e relaxe. Amanhã é domingo e ela terá o dia inteiro para dar uma ordem na casa.

-  Você agora está do lado dela. Ela me afronta e você nem liga.
Aristides perdeu a costumeira paciência:

- Você está ficando muito implicante. Trate de se calar que eu quero ver o filme.

Sem dar importância aos soluços da mulher, ele sentou-se e dispôs-se prazerosamente a continuar vendo o filme.

Em seu quarto, Jacira remexia-se na cama, ner­vosa, procurando analisar o que sentia, confusa e emocionada. Havia momentos que lhe parecia estar mais bonita, sendo admirada, querida, mas havia ou­tros que lhe parecia estar ouvindo a voz da mãe de­preciando suas atitudes.

Depois de tantos anos ouvindo-a repetir as mesmas coisas, era-lhe difícil acreditar que pudesse encontrar alguém que a amasse de verdade. Quem poderia amar uma mulher feia, pobre e inexperiente como ela?

Nesse conflito ela quase não dormiu naquela noite. Mas, apesar disso, na manhã seguinte se le­vantou cedo, seus pensamentos tumultuados não a deixavam relaxar.

Eram sete horas e seus pais ainda dormiam. Foi à padaria, comprou pão, fez café, tomou uma xícara com leite, o que a fez recordar-se do encontro com Ernesto e de suas palavras animadoras.


Ele tinha cultura, era um professor, deveria saber o que estava dizendo. Afirmara que ela era bonita, tratava-a com respeito e atenção, confiava nela. Pen­sando bem, Ernesto tinha muito mais sabedoria e co­nhecimento do que seus pais, pessoas simples e sem cultura. Se ele afirmava que ela tinha condições de conquistar uma vida melhor, deveria acreditar.


Esse pensamento a deixou mais alegre, renovou sua disposição. Teve vontade de ir à casa de Margarida para contar-lhe a novidade e trocar ideias.


Olhando a pia cheia de louças, suspirou. Antes precisava resolver as coisas em casa. Colocou uma cha­leira com água no fogo e começou a dispor a louça.

Pensando em acabar logo e ir à casa de Marga­rida, logo tudo estava em ordem. Foi para o quartinho passar a roupa da semana.

Geni acordou disposta a não deixar passar as ofensas da noite anterior, mas quando entrou na co­zinha e viu tudo limpo, pão fresco na mesa e café pronto, procurou por Jacira, vendo-a passando roupa, mudou de ideia.

Decidiu mostrar abatimento, mas sem brigar. Afinal, ela estava fazendo o serviço.

Passava do meio-dia quando Jacira terminou o serviço, foi para o quarto e arrumou-se para sair. Quando ela passou pela sala, Geni não se conteve:

- Vai sair de novo?

Sem se perturbar Jacira respondeu:

-  Vou visitar uma amiga.

-  Que amiga? Desde que você arrumou amigas ficou impossível. Não vai almoçar?

-  Vai ficar tarde.

-  E a louça?

- Fica por sua conta. Já fiz a minha parte por hoje. E antes que ela respondesse, Jacira saiu e em
poucos segundos estava na parada de ônibus.

Ao tocar a campainha da casa de Margarida, Marinho correu para abrir o portão, abraçando-a com alegria.

Jacira sorriu e entregou-lhe o saco de balas que com­prara no caminho. Atrás dele, Margarida sorrindo, tornou:

- Estava pensando em você! Que bom que veio! Como você está bonita!

- Não diga isso que eu posso começar a acreditar. Conversando animadas, as duas entraram.

-  Hoje eu fiz para o almoço um frango recheado com farofa, como minha mãe fazia. Acabei de tirar do forno, ficou uma beleza! 

Marinho estava com vontade e eu até pensei: devia ter chamado Jacira para almoçar.

-  Desculpe ter vindo na hora do almoço, mas acon­teceu uma coisa e eu estava impaciente para lhe contar.

-  Você sabe que na minha casa não precisa de ce­rimônia. Você é minha melhor amiga. Fico feliz quando vem aqui.


A mesa estava posta e Margarida acrescentou mais um prato. 

Marinho estava em volta ansioso para comer o frango e, conforme Jacira lhe pedira, deixara para chupar as balas depois do almoço.


Margarida colocou as travessas na mesa, sen­taram-se, ela serviu o filho, depois perguntou:


-  Fale, o que você tem para me contar? Seus olhos brilham quando fala nisso. Estou ansiosa para saber.

-  Vamos comer. Depois conversaremos. É um as­sunto muito pessoal.

Margarida segurou a curiosidade. Quando termi­naram de comer, Marinho foi brincar e Jacira contou tudo que lhe acontecera.
Margarida vibrava de alegria. Quando ela ter­minou, disse entusiasmada:

- Eu sabia que você logo iria encontrar alguém. Como é ele? 

Bonito?

- É alto, forte, moreno, bonito mesmo.

-  Além de tudo sabe o que quer! Deu-lhe um beijo logo no primeiro dia!

-  É isso que me incomoda. Acha que está certo? Ele não vai pensar que sou uma mulher fácil?

Margarida sacudiu a cabeça negativamente:

- Nada disso. Os homens gostam de mulher mais ardente.

-  Eu não sou nada disso. Fiquei morrendo de medo. Margarida riu gostosamente.

-  Você começou tarde. Precisa tirar o atraso.

- Não brinque, Margarida. Para mim o assunto é muito sério.

-   Não leve as coisas tão a sério. Foi sua primeira experiência. Que tal, gostou?

Jacira hesitou:

- Ainda não sei. Foi uma surpresa, minhas pernas tremeram, o coração disparou, foi difícil segurar o susto.

-   Logo você vai perder o medo e gostar.

-   Eu esperava que fosse diferente, não sei...

-   Diferente como?

- Pensava que um beijo fosse me deixar enle­vada, nas alturas, apaixonada, mas naquele momento eu só queria fugir, desaparecer, ir para casa. 

Margarida olhou-a séria, passou a mão delicada­mente acariciando os cabelos da amiga e respondeu:

-  Você é ingênua como uma criança. Um beijo bem dado pode provocar várias sensações no corpo. Mas um beijo de amor é muito diferente. Emociona, não dá para explicar em palavras. Você mal conhece Nelson. Está curiosa de saber como é o namoro, mas ainda não está apaixonada por ele.

-  Será? Ele é um homem bonito, amável, edu­cado. Eu gosto dele, mas penso: ele não pode estar sendo sincero. Não sou uma mulher atraente, não sei nem como se namora. O mais provável é que ele não tenha boas intenções.


-  Pensando assim você pode deixar passar o amor de sua vida. Você é uma boa moça, cheia de quali­dades, bonita, trabalhadora. 

Você merece tudo. Não sei se esse Nelson é digno de você. Para mim, você vale mais do que ele.


-  Você é minha amiga e diz isso para me animar.


Elas continuaram conversando animadas e Mar­garida tentava persuadi-la a ver-se de maneira me­lhor. Estava sendo sincera.

Depois de darem uma ordem na cozinha, Marga­rida levou-a para a sala de costura e lá abriu um baú onde tinha alguns cortes de tecido.
Jacira comentou:

-  Que lindos. Você tem bom gosto, é muito boa costureira. Não sei por que seu negócio não deu certo.

-  Como já lhe disse, não sou boa em contas. Atra­palho-me. Precisei trabalhar muito cedo e fui à escola só até o terceiro ano.

-  Eu consegui tirar o diploma. Mas não tenho a capacidade que você tem de costurar.

-  Lamento ter precisado fechar meu ateliê de cos­tura. Sabe, Jacira, trabalhar por conta própria é muito Melhor. Na verdade, trabalha-se mais, porém fazemos do nosso jeito, sem ter ninguém nos controlando.

Jacira suspirou:

- Quem me dera poder viver assim! Se eu tivesse uma profissão como a sua, deixaria o emprego e iria trabalhar por minha conta.

Os olhos de Margarida brilharam e ela colocou as mãos nos ombros de Jacira, olhando-a firme:

- Se você viesse trabalhar comigo, eu me animaria a voltar a costurar para fora.

- Eu?!... Não sei costurar.

- Sabe sim. Fazer os moldes, cortar, montar a roupas, eu sei muito bem. Não tenho medo. E você 1 ótima ajudante, capricha nos arremates e, além disso, é boa nas contas. Tenho notado como você controla seus gastos e os de sua família.

-  Trabalhar com você seria maravilhoso! Mas, será que poderíamos deixar nossos empregos? Nós temos despesas. Daria para sustentar duas famílias?

-  Como não temos capital, no começo poderemos trabalhar só nos fins de semana. Estou certa de que quando disser para minhas antigas freguesas que vou voltar a costurar, elas virão nos procurar.

- Temos de ter dinheiro para comprar material, te­cidos, aviamentos etc. Não teremos como fazer isso.

- Muitas freguesas trazem os tecidos, mas se nós pudéssemos fornecer-lhes, o lucro seria muito maior. Ganharíamos o dobro.

- Infelizmente não temos esse dinheiro. Mas se elas trouxerem os tecidos, poderemos começar dessa forma.


- Que nada. Sou conhecida nas lojas porque com­prava bastante e às vezes faltava parte do dinheiro, mas eu sempre pagava tudo direitinho. Estou certa de que tenho crédito pelo menos para o início.


- Está falando sério?


- Claro que estou. Seremos sócias. Com você con­trolando nosso dinheiro, sei que dará certo. Não será di­fícil ganharmos mais do que na oficina. Que tal, aceita?

- Ainda não sei. É bom demais para ser verdade. Mas preciso pensar.

- Pense com carinho. Vamos nos sentar e você já vai fazer algumas contas. Desta vez quero planejar tudo direito. Vamos fazer uma lista do que teremos que comprar para reabrir o ateliê, quanto vamos gastar, o preço que vamos cobrar e quanto vamos lucrar.

Margarida pegou um caderno, um lápis e deu-o a jacira. Sentaram-se e começaram a trabalhar.

Estavam tão entusiasmadas que nem viram o tempo passar. 

Anoiteceu e Jacira se surpreendeu:

-   E tarde! Que horas são?

-   Sete e meia.

-   Preciso ir.

-   Vou esquentar o jantar, depois você vai.

-   Não estou com fome. É melhor eu ir.

-   Está certo. Você pensa e amanhã ou depois me dá sua resposta.

-   Preciso me acostumar com a ideia. Terei de vir para cá todos os fins de semana. Tenho as aulas do dr. Ernesto aos sábados.

-   Não se preocupe. Podemos começar apenas aos domingos. 

Quando a clientela aumentar pensaremos no que fazer.

Jacira despediu-se; durante o trajeto de volta não conseguia pensar em outra coisa. Tinha medo de deixar o emprego e o projeto não dar certo. Margarida era boa profissional, mas será que ganhariam o sufi­ciente para sustentar as duas famílias?

Eram oito e meia quando desceu do ônibus perto de sua casa. 

Quando chegou na esquina percebeu que Nelson estava lá, parado, esperando-a. Assim que a viu foi a seu encontro:

-   Faz tempo que a estou esperando. Eu lhe disse que viria no fim da tarde, esqueceu?

-   Desculpe... eu precisei ir à casa de uma amiga.

-   Não queria encontrar-se comigo?

-   Não é isso... É que nós estamos planejando tra­balhar juntas.

-   Eu estou gostando de você, mas não sei se sou correspondido.

- Nós ainda nos conhecemos tão pouco!

-  Seja sincera. Não quero sofrer uma decepção.

-  É que eu nunca saí com ninguém. Não sei como me comportar. Sinto-me confusa.


Nelson olhou-a admirado. Ela já era mulher feita. Era-lhe difícil acreditar que fosse verdade.


- É a segunda vez que você me diz isso. Só pode estar brincando comigo.


Ela meneou a cabeça:

-  Não! Esse assunto é para mim muito sério. Já lhe disse isso. Meus pais não me deixavam sair com amigas e minha mãe sempre diz que os homens só querem nos usar. De modo que eu até bem pouco tempo atrás só ia para o trabalho e não saía de casa.
-  Não pensei que fosse assim.

-  Pois foi. Mas cansei dessa vida e comecei a mudar. Você é o primeiro homem com quem eu saí e...

Ela parou e baixou os olhos. Nelson levantou o queixo dela e perguntou:

-  Eu fui o primeiro homem que a beijou?

-  Foi.

Ele apertou a mão dela e levou-a aos lábios. De­pois disse:

-  Eu senti que você era uma mulher muito espe­cial. Ainda acredita que todos os homens são apro­veitadores?

-  Não sei... Estou confusa, um pouco descontro­lada, sentindo emoções que não tinha sentido antes.

-  Vamos nos sentar no banco da praça. Temos muito que conversar.

-  É tarde. Não sei se posso...

-  Você pode. Não é mais criança e se está tentando assumir sua vida, não pode depender de ninguém, deve tomar suas próprias decisões. O que importa é saber se você quer conversar mais comigo agora.

Jacira levantou a cabeça com certa altivez e res­pondeu:

- Eu quero, mas estou insegura.

- Nós nos conhecemos há pouco tempo. Para você confiarem mim, tem de conhecer-me melhor. Saber como penso, como tem sido a minha vida. Você me contou como tem sido a sua, desejo fazer a mesma coisa.

-   Está bem. Vamos.

Foram caminhando até a praça de mãos dadas e sentaram-se em um banco mais discreto. Jacira sentia-se mais calma. Pelo jeito Nelson não pensava mal dela. Sua mãe estava errada.

- Tenho quarenta anos, começou ele, casei-me aos vinte e cinco. Foi um casamento errado. Eu nasci em Presidente Prudente, interior de São Paulo. Aos vinte anos, formei-me em contabilidade, queria pro­gredir. Deixei minha família, meus pais e uma irmã e vim para cá.
"Nunca tinha saído de casa, nos primeiros tempos estranhei muito. 

Cheguei a passar dificuldades porque estava difícil conseguir um emprego. Eu não tinha prá­tica na profissão, então tive de começar como entre­gador em um escritório.

"Mas trabalhei com coragem e fui melhorando no trabalho. Conheci Aurora, senti-me atraído por ela, ca-samo-nos um ano depois. Eu tinha vinte e cinco e ela dezoito anos."


Nelson fez uma pausa, dava para perceber que ao recordar essa época de sua vida, ele se entristecia. Seu rosto se contraíra penosamente e Jacira, apesar da curiosidade que sentia, disse penalizada:


-   Se você se sente triste quando fala nisso, é melhor falarmos de outra coisa.


-   Não. Eu quero lhe contar mesmo.

-   Está bem, continue...

-   Ela me disse que era órfã de pai e sua mãe morava no Rio de Janeiro. Ela era filha única. Achei estranho que ela não morasse com a mãe, e estivesse sozinha em São Paulo. Mas ela disse que tinha vindo trabalhar e como o emprego não tinha dado certo, es­tava à procura de outro.

"No começo nos demos bem, eu notava que ela era um pouco distraída, não cuidava bem da casa, que era pequena, não sabia controlar os gastos e eu fui forçado a cuidar das nossas despesas para que o sa­lário fosse suficiente.

"Quando nossa filha nasceu, ela ficou pior, então começaram nossas discussões. Ela reclamava muito por ter de cuidar da menina, então pediu para a mãe vir ajudá-la por algum tempo. Eu não a co­nhecia, ela não viera ao nosso casamento. Dona Rosa era uma mulher vistosa, arrumava-se de ma­neira a chamar a atenção e não gostei do jeito dela desde o primeiro dia.

"Mas como se afeiçoou logo à menina e cuidava dela com capricho, acabei por aceitá-la. Para encurtar a história, descobri que Aurora deixava a filha com a mãe e saía quase todas as tardes. Ela estava muito diferente comigo. Tornara-se desagradável, esqui­vava-se de meus carinhos, isso tudo despertou minha desconfiança. Num dia, depois do almoço, fingi que ia trabalhar e fiquei vigiando-a. Nem meia hora depois, ela saiu, muito bem-arrumada, e eu a segui. Ela tomou um táxi e eu fiz o mesmo. Ela desceu pouco depois e entrou em um prédio de apartamentos. Entrei atrás, conversei com o porteiro e por algum dinheiro ele me contou aonde ela ia e com quem, com a condição de eu ficar calmo e não brigar com o homem:

"- Sabe como é, se ele descobre que fui eu quem contou, vou perder o emprego. Tenho mulher e filhos e não posso ficar desempregado. Espere ela sair e vá brigar com ela quando deixar o prédio. Eu sabia que ela era casada e isso me incomoda muito. 

Prometa que não fará nada a ele. Afinal, não tem culpa, ela é que fica atrás dele.

"Eu prometi e fiquei sabendo que fazia mais de três meses que ela ia lá duas vezes por semana. Fiquei cego de raiva. Fingi que saí, mas quando o porteiro entrou na outra sala, entrei rapidamente e fui até o apartamento. Não bati na porta, fiquei a esperando sair. Eu juro que se eu tivesse uma arma naquele mo­mento, teria matado os dois."

Ele passou a mão nos cabelos respirou fundo e continuou:

Não sei quanto tempo esperei até que a porta se abrisse. Escondi-me atrás de um canto da parede e fiquei olhando. Ela saiu abraçada a um  -  homem forte, moreno, vi quando se beijaram e nesse momento não me contive. Avancei e a esbofeteei não sei quantas vezes, não me lembro bem. Quando penso nisso me dá um branco. O homem era covarde, assim que apa­reci, ele entrou e fechou a porta com a chave.


-  Ela deve ter ficado com muito medo! - comentou Jacira assustada.

-  Qual nada. Ela reagiu, afrontou-me e alguns moradores até abriram a porta para ver o que estava acontecendo. O porteiro ficou nervoso e pediu que saís­semos. Só sei que ela saiu correndo e eu ainda fiquei sem saber bem o que fazer. Sentia vontade de desa­parecer, sumir.

"Deixei o prédio e não sei por quanto tempo caminhei sem rumo. Eu não podia voltar para casa, mas ao mesmo tempo pensava em minha filha, a quem eu adorava."

Jacira, comovida, acariciou o braço dele querendo confortá-lo.
Olhos fixos em um ponto indefinido, rosto contraído, preso às lembranças, Nelson continuou falando:

- Era tarde da noite quando fui para casa. Entrei e não encontrei ninguém. No quarto, os armários abertos e vazios: Aurora tinha fugido levando minha filha.

"Fiquei desesperado. Se de um lado senti alívio por não ter de vê-la novamente, por outro fiquei pro­fundamente preocupado. Eu queria minha filha. Não podia concordar que ela ficasse com a menina depois da cena que presenciei. Para onde teriam ido?

"Apesar do adiantado da hora apanhei o telefone e liguei para d. Rosa. Ela atendeu logo, dizendo que Aurora estava em sua casa com Célia. Respirei aliviado.

Prometi a ela que não iria fazer nada contra Aurora, mas que não desejava vê-la nunca mais."

Nelson suspirou e ficou calado por alguns ins­tantes, depois continuou:

- Dona Rosa aconselhou-me que esfriasse a ca­beça, descansasse e conversaria comigo no dia se­guinte. Bem, fiz o que ela me pediu, mesmo porque sentia dores pelo corpo, estava moído. Parecia que um trem havia passado sobre mim. No dia seguinte, pro­curei um advogado para pedir a separação e a guarda de Célia. Consegui provar a traição e, além do des­quite, obtive a guarda da menina. 

Meus pais e minha irmã moram em Presidente Prudente e minha filha está morando com eles.

- Sua filha se acostumou com a mudança de vida?

- Melhor do que eu pensava. Aqui ela vivia mais com a avó do que com a mãe. Meus pais são amo­rosos, minha irmã é alegre e está sempre de bem com a vida. Ao lado deles, Célia melhorou muito. 

Ficou mais falante, mais alegre. Vou vê-la uma vez por mês. Quando chego lá, ela sempre tem muitas coisas para contar. Adora a escola, tem amigas, enfim, a melhor coisa em tudo isso foi que ela está muito bem.

- E Aurora, ainda mora em São Paulo?

- Não sei. Depois de formalizarmos o desquite, nunca mais a vi.



Jacira estava comovida. Sentia que aquela con­fissão derretera a barreira que existia entre eles. Com prazer, enfiou o braço no dele que, sentindo-se com­preendido, segurou a mão dela levando-a aos lábios.


Jacira sentia que estavam se conhecendo, que Nelson era um homem sensível, bom, querendo es­quecer o passado e reconstruir sua vida.
 

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