sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Capítulo 4 
Margarida olhou Jacira diante do espelho e co­mentou:


- Veja como ficou bom! Caiu como uma luva! Jacira se virou algumas vezes, olhando-se de vá­rios ângulos, e tornou:


-  Essa nem parece eu! Você faz maravilhas!


-  Claro que é você! Se eu tivesse um corpo bem feito como o seu, iria me vestir sempre assim!


-  Eu pareço mais alta, a cintura mais fina, sou eu mesma?


-  Claro que é. Sempre achei que você não estava valorizando seu corpo. Por essa razão quis ajudá-la a perceber isso. Sabe, eu tenho olho de costureira. Quando olho para uma mulher vejo logo o tipo que é e penso qual modelo iria lhe cair bem.


Os olhos de Jacira brilhavam de prazer. Era a pri­meira vez que alguém a elogiava daquela forma e ela notava que a amiga dizia a verdade. Estava gostando de ver sua figura no espelho.


- Agora, tire o vestido. Vou acabar, mas não sei se vai dar tempo para o serviço de mão.


-   Você já fez demais. Eu levo para casa e faço o serviço de mão. É o mínimo que posso fazer. 


-   Está bem. Vou deixar para você o mínimo possível.

Ela despiu o vestido, vestiu o outro e, apesar de havê-lo reformado, o tecido era pobre e o modelo sem graça. Suspirou conformada.

-   O que foi? Não gostou de alguma coisa?

-   Depois de ter experimentado o novo, não po­deria gostar de vestir este.

-   Não se preocupe. Com o tempo daremos um jeito nisso.

-   Você sabe o que faz. Gostaria de aprender a costurar como você.

- Se quiser posso ensiná-la. Eu adoro fazer isso. Jacira não se conteve:

-   Você é amiga mesmo. Obrigada por tudo!

Elas continuaram conversando, Margarida ia lhe ensinando algumas coisas sobre confecção.

Eram sete horas da noite quando Jacira, carre­gando uma sacola com o precioso vestido, despediu-se de Margarida.

-  Ficou faltando apenas uma parte do chuleado e a bainha. Faça tudo com capricho para não prejudicar o caimento do vestido.
-  Pode deixar. Farei tudo do seu jeito. Nem sei o que dizer depois do que você fez. Gostaria que me dissesse quanto vai cobrar pelo seu trabalho.

- Você é minha amiga. Só vai pagar o tecido.

-  Não é justo. Você trabalhou o dia inteiro, ainda me tratou como uma dama, com almoço, sobremesa, chocolates. Não posso pagar o que vale de fato, mas acho que pelo menos alguma coisa...

-  Nada disso. Passamos um dia muito agradável, conversamos, tive o prazer de costurar como nos ve­lhos tempos.

Jacira abraçou-a comovida:

- Nunca tive uma amiga como você. Nunca es­quecerei o que está fazendo por mim.

-   Eu gosto de você. Nossa amizade vale mais do que qualquer dinheiro.

Jacira não conseguiu articular palavra. Deu um sonoro beijo na face de Margarida, que viu sinceridade em seus olhos. Apertou sua mão dizendo:

- Espero repetir muitos domingos como este. Vá com Deus.
Jacira murmurou um "obrigada" e saiu. Durante o trajeto do ônibus de volta para casa, sentia-se alegre, satisfeita. Seu rosto havia perdido aquele traço de amargura que lhe era peculiar.

O prazer de saber que alguém valorizava sua ami­zade, via alguma beleza em seu corpo, e desejava con­tribuir para que sua vida se tornasse melhor, dava-lhe uma agradável sensação de descoberta. 

Sentia-se mais segura, mais motivada para continuar insistindo em modernizar-se, vestindo-se como as mulheres de sua idade, tornando-se uma pessoa mais viva.

Até então, ela sempre se sentira um zero à es­querda. Ninguém a notava, não tinha amigos, confor­mara-se em passar pela vida como se não fizesse parte dela, sendo uma figurante sem importância. 

Mas, de repente, tudo começara a modificar-se e ela estava gostando das mudanças.


Foi com a fisionomia distendida que Jacira entrou em casa carregando a sacola com o vestido. Encontrou o pai na sala vendo televisão e a mãe, na cozinha.


Vendo-a chegar, Geni apareceu dizendo:

- Pode-se saber onde a senhora andou desde cedo até uma hora destas?

Jacira, trazida à realidade pela frase dita em tom de desafio, suspirou tentando não entrar na discussão, que ela já pressentia atrás daquelas palavras.

- Eu disse que ia passar o dia na casa de uma colega de trabalho.
Geni voltou-se para o marido dizendo chorosa:

-Está vendo? Eu não disse? Ela foi passar o dia fora sem pensar que nós ficaríamos sozinhos o dia in­teiro. A roupa que você passa nos fins de semana ficou toda no cesto, a louça está empilhada na cozinha.

-  E eu fiquei sem a maionese que você sempre faz aos domingos - queixou-se Tide.

Jacira olhou-os como se os estivesse vendo pela primeira vez. O contraste deles com a paz que havia na casa de Margarida, a delicadeza dela no trato, fê-la notar o quanto seus pais eram egoístas, pendurando-se nela para tudo.

Não se conteve e respondeu:

-  Você poderia pelo menos ter arrumado a co­zinha. Assim, agora eu poderia cuidar da roupa.

-  Eu?! Está vendo, Tide? Uma mulher doente, ter de ouvir isso de uma filha depois da dedicação de toda uma vida, é cruel demais!

Ao que ele, voltando-se para a filha, respondeu:

-  Como pode dizer isso a ela? Está cansada de saber que ela está sempre mal.

-  Talvez seja por não fazer nada. Lavar uma louça não é pesado.
Geni olhou-a ofendida, pegou uma toalha de papel, assoou o nariz ruidosamente e afastou-se.

- Está vendo o que você fez? Sua mãe saiu chorando.

Jacira suspeitou que Geni estivesse fingindo e respondeu imperturbável:

- Eu vou passar a roupa, mas não lavarei a louça. Ela que volte à cozinha, coloque uma chaleira de água para esquentar e lave a louça.

Aristides ia retrucar, mas Jacira foi para a me­sinha no cobertinho perto do tanque, ligou o ferro e começou a separar a roupa para passar.

Aristides foi procurar Geni, que estava no quarto deitada, e disse:
- Jacira disse que vai passar a roupa, mas a louça ela não lava. É para você colocar a chaleira de água para esquentar e ir lavar a louça.

Geni sentou-se na cama como se tivesse sido im­pulsionada por uma mola:

- Ela teve a coragem de dizer isso?

-   Teve. E falou decidida, foi ligar o ferro e pre­parar a roupa para passar.

Nossa filha nunca foi assim. Por essa razão não gosto que ela faça amizade com outras pessoas. Elas logo começam a dar palpites em nossa  


-   vida. Foi só ela ir à casa da amiga que voltou desse jeito, pondo as manguinhas de fora. Mas eu não vou fazer o que ela disse.


-   Acho bom você ir. A pia está uma bagunça, cheia de pratos sujos, copos, nem a louça do café você lavou!

- Não lavei porque não estava me sentindo bem.

-   Mas estava disposta para ler aquela revista de novelas.

-   Agora você também vai implicar comigo? Será que não posso ter um momento de distração?

-   Distração você tem muita quando fica horas assistindo à televisão e não deixa eu ver o programa esportivo.

-   Já vai começar? O que foi que eu fiz para ter uma cruz como esta? Não basta uma filha sem co­ração, você também deu para implicar?

Ele suspirou resignado e foi ver televisão na sala. Há muito desconfiava do mal-estar da mulher. Não gostava de ver a cozinha suja, as coisas fora do lugar, mas não dizia nada para evitar discussões.

Por qualquer coisa, Geni era capaz de ficar atrás dele se lamentando por horas, até por dias seguidos, e ele preferia preservar sua paz.

Eram quase dez horas quando Jacira terminou de passar a roupa, desligou o ferro e foi guardar as roupas. Ao passar pela cozinha notou irritada que sua mãe sequer havia colocado a água no fogo.

Inconformada, foi até o quarto onde Geni per­manecia deitada, colocou a roupa passada sobre uma cadeira e disse:

- Passei pela cozinha e você nem colocou a água no fogo. Desse jeito vai demorar muito para terminar a louça.

-  Eu não estou em condições de ir para a cozinha. Não me sinto bem.

-  Quando cheguei você estava muito bem. Chegou até a me repreender.

-  Mas logo depois me senti muito mal. Você me chamou de preguiçosa.

Jacira suspirou tentando segurar a vontade que sentia de dar vazão a sua indignação. Respondeu apenas:

- Eu disse que não ia lavar a louça. Passei toda a roupa da semana e agora vou me deitar. Amanhã tenho de levantar cedo para trabalhar.
Geni sentou-se na cama nervosa:

-  O que custa você fazer isso para mim? Não vê que estou doente?

-  Se eu não me cuidar quem vai ficar doente de verdade sou eu. Por esse motivo, vou dormir.

- Não acredito que vai fazer isso comigo. Como vamos tomar café amanhã com a cozinha daquele jeito?

-   Vai ser ruim mesmo. Então, é melhor você ir cuidar disso o quanto antes.

Sem dizer mais nada, Jacira foi para o quarto e fechou a porta. 

Geni, ouvindo o ruído da porta do quarto dela se fechando, levantou-se e sem fazer ba­rulho foi até o corredor.

De fato, Jacira fora para o quarto e se preparava para dormir. 

Inconformada, desceu as escadas e foi ter com o marido que assistia à televisão.

-        Tide, você precisa fazer alguma coisa, tomar uma providência.


-   O que foi?

-   A Jacira me desobedeceu, não lavou a louça.

-        Ela combinou com você que essa parte seria sua. Ela passou a roupa?

-   Passou, mas a cozinha continua suja.

-   Essa é a sua parte. Você não combinou com ela?

-Eu não combinei nada. Foi ela quem disse isso. Eu estou doente, pedi-lhe para fazer essa parte, mas sabe o que o que foi que ela disse?

Tide meneou a cabeça negativamente. Geni continuou:

-   Respondeu que não iria fazer, deu as costas e foi dormir. Já pensou como vai ser amanhã cedo?

-   Já. É melhor você ir lavar a louça.

-   Mas eu não estou bem e depois da maldade que Jacira fez comigo, senti-me pior.

-   Eu é que não posso fazer isso. É tarefa de mulher.

-   Você não vai fazer nada? Vai deixar que Jacira me trate assim?

-   Não vou me meter na briga de vocês. Onde está sua autoridade de mãe? Você não vive dizendo que sabe como lidar com ela?

Geni olhou para o marido com raiva. Depois foi para a cozinha e decidiu: colocou a chaleira de água no fogo e começou a separar a louça. Enquanto espe­rava a água esquentar foi até o marido e lamentou:

- Eu vou me sacrificar desta vez. Mas amanhã cedo Jacira vai ouvir. Não posso ser maltratada assim pela minha própria filha.

Aristides acenou com a cabeça concordando, sem prestar atenção ao que ela dizia, olhos fixos no filme que assistia pela televisão.
Geni não teve alternativa senão voltar à cozinha e, enquanto lavava a louça, ficar pensando na desforra que iria tirar da filha nos próximos dias.

Na manhã seguinte, Jacira se levantou cedo, ar­rumou-se e desceu para a cozinha. Sorriu ao ver que tudo estava limpo. Mas Geni não se levantara ainda.

Fez o café, colocou o pão no forno para esquentar, arrumou a mesa e sentou-se esperando o pão. Não podia se esquecer de como ficara com o vestido novo. Sentiu vontade de vesti-lo, mas não achava bom ir trabalhar com ele.

Enquanto tomava o café e comia o pão imaginava onde poderia usar o vestido. Nunca saía para passear.

Aristides apareceu na cozinha e vendo-a disse:

- Sua mãe está dormindo ainda. Também, ontem ficou arrumando a cozinha até tarde!

Jacira percebeu a censura na frase do pai e não se perturbou. 

Respondeu apenas:

-  A culpa é dela. Nem a louça do café da manhã ela tinha lavado. Deixou acumular tudo e, claro, teve mais trabalho na hora de lavar.


-  Você sabe que ela é doente. Não era muito tarde quando você acabou de passar roupa. O que custava ter cuidado também da louça?


Jacira olhou-o séria:

- Todos nós moramos na casa, dormimos, co­memos aqui, é justo que todos cooperemos para manter a ordem. Eu passo o dia todo trabalhando para pagar as despesas, enfrento o trânsito pendurada em um ônibus lotado. Vocês passam o dia inteiro em casa, sem fazer nada, vendo televisão, conversando com os vizinhos, lendo jornal e revistas. E quando chego can­sada ainda tenho de cuidar da louça que vocês sujaram o dia inteiro, sendo que eu nem almoço em casa. Acha que é justo?

Aristides olhou-a surpreendido e de pronto não encontrou palavras para responder. Depois de alguns segundos disse:

- Você fala como se eu fosse culpado por não en­contrar trabalho. - Suspirou triste e continuou: - Você sabe que é difícil. Ninguém emprega um homem de­pois dos cinquenta anos. Sua mãe é doente, cansada, não sente disposição para trabalhar. Você está sendo injusta falando assim. Nós estamos velhos e mere­cemos respeito.

Jacira olhou para ele. Era um homem forte, co­rado, fisicamente capaz de fazer muitas coisas. Mas era verdade que o emprego estava difícil até para os mais novos e as empresas não contratavam os mais velhos. Seu pai estava com mais de sessenta anos.

- O senhor não vai mesmo encontrar trabalho por causa da idade, mas por que não ajuda a fazer algum serviço de casa?

- O quê? Serviço de casa é coisa de mulher. Eu me sentiria o último dos homens fazendo isso.

-  Isso é orgulho. Os melhores cozinheiros são ho­mens e são muito respeitados. Há homens em todas as profissões que fazem os mesmos serviços que as mulheres. São tintureiros, copeiros, garçons, e não se envergonham.

-  De onde você tirou essas ideias? Sua mãe tem razão. Desde que começou a ter essa amiga, está de cabeça virada. É melhor acabar logo com essa ami­zade. Você se deixa influenciar muito depressa pelos pensamentos dos outros.

Jacira levantou-se irritada, mas conteve-se. Lavou sua xícara, enxugou-a e guardou. Depois tornou:

- Está na hora de eu ir. Não quero me atrasar.

Ela saiu satisfeita por poder ver-se livre dos co­mentários dele. Durante o trajeto para a oficina, Jacira foi pensando onde poderia usar o vestido novo.

Poucos minutos depois, Geni apareceu na cozinha e Aristides notou logo que ela não parecia bem. Cami­nhava apoiando-se nos móveis, rosto franzido, ar triste.

- O que foi, você não está bem? Geni fixou-o, suspirou, depois disse:


-  Como você queria que eu estivesse depois do que Jacira me fez ontem? Nunca pensei em receber tanta ingratidão.


-  Também não foi tanto assim. Afinal, Jacira le­vanta cedo, trabalha o dia inteiro, chega cansada e ainda tem que fazer tudo em casa.

-  Até você está contra mim? Que vida a minha. Ninguém faz nada por mim.

-  Não se lamente. Não vai resolver mesmo. Afinal, somos pobres, estou desempregado e temos que nos sujeitar a ser sustentados por Jacira.

-  Você tem saúde, bem que podia ter aceitado aquele emprego.

-  Eu sou um operário qualificado. Nunca vou su­jeitar-me a ficar de porteiro naquele edifício.

- Por que não?

-Minha aposentadoria saiu e já cumpri minha parte trabalhando naquela fábrica desde os quatorze anos. E sabe o que Jacira teve coragem de me dizer?

Geni havia se sentado diante da mesa e servia-se de café com leite, passara margarina em uma gene­rosa fatia de pão e respondeu:
- Não.

Ele continuou:

-  Que eu deveria ajudar nos serviços da casa. Que todos nós moramos aqui e temos o dever de cooperar para que tudo fique em ordem.

-  Até que não seria ruim se você lavasse uma louça, fizesse uma faxina na cozinha. Assim Jacira não precisaria trabalhar tanto.

-  A obrigação é de vocês duas. Eu não me presto a fazer serviço de mulher. O que meus amigos iriam dizer se me encontrassem de avental lavando louça? Fico arrepiado só de pensar!

-  Isso é bobagem. Depois, eles não precisariam saber. Para começar você poderia tirar a mesa, eu já terminei, e lavar a louça do café.

Aristides irritou-se:

-  Não vou fazer isso e acho melhor você não deixar juntando na pia para não ter de lavar tudo no fim da noite. 

Pelo tom que Jacira usou quando falou comigo, ela não vai querer lavar. Ela só lavou a xícara que ela usou, a minha ficou.

-  Nesse caso, você deveria ter lavado a sua. Assim eu não teria de lavar tudo.

Ele olhou-a sério. Pelo tanto de café com leite e pão que ela havia engolido, e pelo tom de voz que es­tava usando, ele percebeu que ela não estava doente como dizia.

Ele sabia que ela costumava exagerar para em­purrar todo o serviço da casa para Jacira. Ela gostava mesmo era de estender-se no sofá da sala, colocar os pés no banquinho e ler as revistas de fotonovela.

- Você se lamenta por tudo. Enche a cabeça com aquelas fotonovelas açucaradas e fica infeliz porque sua vida não é igual a das mocinhas das histórias. Você, às vezes, parece que ainda não cresceu. Uma mulher velha como você não deveria acreditar na­quelas baboseiras.


-  Você consegue sempre ser desagradável. Como se fosse melhor do que eu. Fica lendo jornal o dia in­teiro, a noite fica em frente à televisão e nunca quer ver os programas de que eu gosto.


-  Você só quer ver peças de teatro, filmes. Eu sou um homem bem informado. Gosto da realidade. Pre­firo assistir às notícias. Você vai fazer o almoço?


-  Vou fazer o almoço e só. Não vou arrumar a cozinha.


Aristides deu de ombros:


- Faça como quiser. O problema é seu. Apanhou o jornal, foi para a sala, sentou-se em

uma poltrona e preparou-se para começar a ler. Naquela tarde, ele iria ao barbeiro aparar os cabelos e precisava estar bem informado para comentar com os amigos.

 

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