Margarida olhou Jacira diante do espelho e comentou:
- Veja
como ficou bom! Caiu como uma luva! Jacira se virou algumas vezes, olhando-se
de vários ângulos, e tornou:
- Essa
nem parece eu! Você faz maravilhas!
- Claro
que é você! Se eu tivesse um corpo bem feito como o seu, iria me vestir sempre assim!
- Eu
pareço mais alta, a cintura mais fina, sou eu mesma?
- Claro
que é. Sempre achei que você não estava valorizando seu corpo. Por essa razão
quis ajudá-la a perceber isso. Sabe, eu tenho olho de costureira. Quando olho
para uma mulher vejo logo o tipo que é e penso qual modelo iria lhe cair bem.
Os
olhos de Jacira brilhavam de prazer. Era a primeira vez que alguém a elogiava
daquela forma e ela notava que a amiga dizia a verdade. Estava gostando de ver
sua figura no espelho.
- Agora, tire o vestido. Vou
acabar, mas não sei se vai dar tempo para o serviço de mão.
- Você já fez demais. Eu
levo para casa e faço o serviço de mão. É o mínimo que posso fazer.
- Está bem. Vou deixar para
você o mínimo possível.
Ela despiu o vestido,
vestiu o outro e, apesar de havê-lo reformado, o tecido era pobre e o modelo
sem graça. Suspirou conformada.
- O que foi? Não gostou de
alguma coisa?
- Depois de ter
experimentado o novo, não poderia gostar de vestir este.
- Não se preocupe. Com o
tempo daremos um jeito nisso.
- Você sabe o que faz.
Gostaria de aprender a costurar como você.
- Se quiser posso ensiná-la.
Eu adoro fazer isso. Jacira não se conteve:
- Você é amiga mesmo.
Obrigada por tudo!
Elas continuaram
conversando, Margarida ia lhe ensinando algumas coisas sobre confecção.
Eram sete horas da noite
quando Jacira, carregando uma sacola com o precioso vestido, despediu-se de Margarida.
- Ficou faltando apenas uma
parte do chuleado e a bainha. Faça tudo com capricho para não prejudicar o
caimento do vestido.
- Pode deixar. Farei tudo do
seu jeito. Nem sei o que dizer depois do que você fez. Gostaria que me dissesse
quanto vai cobrar pelo seu trabalho.
- Você é minha amiga. Só vai pagar o tecido.
- Não é justo. Você
trabalhou o dia inteiro, ainda me tratou como uma dama, com almoço, sobremesa,
chocolates. Não posso pagar o que vale de fato, mas acho que pelo menos alguma
coisa...
- Nada disso. Passamos um
dia muito agradável, conversamos, tive o prazer de costurar como nos velhos
tempos.
Jacira abraçou-a comovida:
- Nunca tive uma amiga como
você. Nunca esquecerei o que está fazendo por mim.
- Eu gosto de você. Nossa
amizade vale mais do que qualquer dinheiro.
Jacira não conseguiu
articular palavra. Deu um sonoro beijo na face de Margarida, que viu
sinceridade em seus olhos. Apertou sua mão dizendo:
- Espero repetir muitos domingos como este. Vá com
Deus.
Jacira murmurou um
"obrigada" e saiu. Durante o trajeto
do ônibus de volta para casa, sentia-se alegre, satisfeita. Seu rosto havia perdido aquele
traço de amargura que lhe era peculiar.
O prazer de saber que
alguém valorizava sua amizade, via alguma beleza em seu corpo, e desejava contribuir
para que sua vida se tornasse melhor, dava-lhe
uma
agradável sensação de descoberta.
Sentia-se
mais
segura, mais motivada para continuar insistindo em modernizar-se, vestindo-se como as mulheres de sua
idade, tornando-se uma pessoa mais viva.
Até então, ela sempre se sentira um zero à esquerda.
Ninguém a notava, não tinha amigos, conformara-se
em
passar pela vida como se não fizesse parte dela, sendo uma figurante sem
importância.
Mas, de repente, tudo começara a modificar-se e ela estava gostando das mudanças.
Foi com a fisionomia distendida que Jacira entrou em
casa carregando a sacola com o vestido. Encontrou o pai na sala vendo televisão
e a mãe, na cozinha.
Vendo-a
chegar, Geni apareceu dizendo:
- Pode-se
saber onde a senhora andou
desde cedo até uma hora destas?
Jacira, trazida à
realidade pela frase dita em tom de desafio, suspirou tentando não entrar na
discussão, que ela já pressentia atrás daquelas palavras.
- Eu disse que ia passar o dia na casa de uma colega
de trabalho.
Geni voltou-se para o marido dizendo chorosa:
-Está vendo? Eu não disse? Ela foi passar o dia
fora sem pensar que nós ficaríamos sozinhos o dia inteiro. A roupa que você
passa nos fins de semana ficou toda no cesto, a louça está empilhada na
cozinha.
- E eu
fiquei sem a maionese que você sempre faz aos domingos - queixou-se Tide.
Jacira
olhou-os como se os estivesse vendo pela primeira vez. O contraste deles com a
paz que havia na casa de Margarida, a delicadeza dela no trato, fê-la notar o
quanto seus pais eram egoístas, pendurando-se nela para tudo.
Não
se conteve e respondeu:
- Você
poderia pelo menos ter arrumado a cozinha. Assim, agora eu poderia cuidar da
roupa.
- Eu?!
Está vendo, Tide? Uma mulher doente, ter de ouvir isso de uma filha depois da
dedicação de toda uma vida, é cruel demais!
Ao
que ele, voltando-se para a filha, respondeu:
- Como
pode dizer isso a ela? Está cansada de saber que ela está sempre mal.
- Talvez
seja por não fazer nada. Lavar uma louça não é pesado.
Geni olhou-a
ofendida, pegou uma toalha de papel, assoou o
nariz ruidosamente e afastou-se.
- Está
vendo o que você fez? Sua mãe saiu chorando.
Jacira
suspeitou que Geni estivesse
fingindo e respondeu imperturbável:
- Eu
vou passar a roupa, mas não lavarei a louça. Ela que volte à cozinha, coloque
uma chaleira de água para esquentar e lave a louça.
Aristides ia retrucar, mas Jacira foi para a mesinha no cobertinho perto do tanque, ligou o ferro e começou
a separar a roupa para passar.
Aristides foi procurar Geni, que
estava no quarto deitada, e disse:
- Jacira
disse que vai passar a roupa, mas a louça ela não lava. É para você colocar a
chaleira de água para esquentar e ir lavar a louça.
Geni sentou-se na cama como se tivesse sido impulsionada por uma
mola:
- Ela teve a coragem de dizer isso?
- Teve. E falou decidida,
foi ligar o ferro e preparar a roupa para passar.
- vida. Foi só ela ir à casa
da amiga que voltou desse jeito, pondo as manguinhas de fora. Mas eu não vou
fazer o que ela disse.
- Acho bom você ir. A pia
está uma bagunça, cheia de pratos sujos, copos, nem a louça do café você lavou!
- Não lavei porque não estava me sentindo bem.
- Mas estava disposta para
ler aquela revista de novelas.
- Agora você também vai
implicar comigo? Será que não posso ter um momento de distração?
- Distração
você tem muita quando fica
horas assistindo à televisão e não deixa eu ver o programa esportivo.
- Já vai começar? O que foi
que eu fiz para ter uma cruz como esta? Não basta uma filha sem coração, você
também deu para implicar?
Ele suspirou resignado e
foi ver televisão na sala. Há muito desconfiava do mal-estar da mulher. Não gostava de ver a cozinha suja, as
coisas fora do lugar, mas não dizia nada para evitar discussões.
Por qualquer coisa, Geni
era capaz de ficar atrás dele se lamentando por horas, até por dias seguidos, e
ele preferia preservar sua paz.
Eram quase dez horas
quando Jacira terminou de passar a roupa, desligou o ferro e foi guardar as
roupas. Ao passar pela cozinha notou irritada que sua mãe sequer havia colocado
a água no fogo.
Inconformada, foi até o
quarto onde Geni permanecia deitada, colocou a roupa passada sobre uma cadeira
e disse:
- Passei pela cozinha e
você nem colocou a água no fogo. Desse jeito vai demorar muito para terminar a
louça.
- Eu não estou em condições
de ir para a cozinha. Não me sinto bem.
- Quando cheguei você estava
muito bem. Chegou até a me repreender.
- Mas logo depois me senti
muito mal. Você me chamou de preguiçosa.
Jacira suspirou tentando
segurar a vontade que sentia de dar vazão a sua indignação. Respondeu apenas:
- Eu disse que não ia lavar a louça. Passei toda a
roupa da semana e agora vou me deitar. Amanhã tenho de levantar cedo para
trabalhar.
Geni sentou-se na cama nervosa:
- O que custa você fazer
isso para mim? Não vê que estou doente?
- Se eu não me cuidar quem
vai ficar doente de verdade sou eu. Por esse motivo, vou dormir.
- Não acredito que vai fazer
isso comigo. Como vamos tomar café amanhã com a cozinha daquele jeito?
- Vai ser ruim mesmo. Então,
é melhor você ir cuidar disso o quanto antes.
Sem dizer mais nada,
Jacira foi para o quarto e fechou a porta.
Geni, ouvindo o ruído da porta do
quarto dela se fechando, levantou-se
e sem
fazer barulho foi até o corredor.
De fato, Jacira fora para
o quarto e se preparava para dormir.
Inconformada, desceu as escadas e foi ter
com o marido que assistia à televisão.
- Tide, você precisa fazer alguma coisa, tomar uma providência.
- O que foi?
- A Jacira me desobedeceu,
não lavou a louça.
- Ela combinou com você que essa parte seria sua. Ela passou a roupa?
- Passou, mas a cozinha
continua suja.
- Essa é a sua parte. Você
não combinou com ela?
-Eu
não combinei nada. Foi ela quem disse isso. Eu estou doente, pedi-lhe para
fazer essa parte, mas sabe o que o que foi que ela disse?
Tide
meneou a
cabeça negativamente. Geni continuou:
- Respondeu
que não iria fazer, deu as costas e foi dormir. Já pensou como vai ser amanhã
cedo?
- Já.
É melhor você ir lavar a louça.
- Mas
eu não estou bem e depois da maldade que Jacira fez comigo, senti-me pior.
- Eu é
que não posso fazer isso. É tarefa de mulher.
- Você
não vai fazer nada? Vai deixar que Jacira me trate assim?
- Não
vou me meter na briga de vocês. Onde está sua autoridade de mãe? Você não vive
dizendo que sabe como lidar com ela?
Geni olhou para o marido com raiva. Depois foi para a
cozinha e decidiu: colocou a chaleira de água no fogo e começou a separar a
louça. Enquanto esperava a água esquentar foi até o marido e lamentou:
- Eu
vou me sacrificar desta vez. Mas amanhã cedo Jacira vai ouvir. Não posso ser
maltratada assim pela minha própria filha.
Aristides acenou com a cabeça concordando, sem prestar atenção
ao que ela dizia, olhos fixos no filme que assistia pela televisão.
Geni não teve alternativa senão voltar à cozinha e,
enquanto lavava a louça, ficar pensando na desforra que iria tirar da filha nos
próximos dias.
Na
manhã seguinte, Jacira se levantou cedo, arrumou-se e desceu para a cozinha.
Sorriu ao ver que tudo estava limpo. Mas Geni não se levantara ainda.
Fez
o café, colocou o pão no forno para esquentar, arrumou a mesa e sentou-se
esperando o pão. Não podia se esquecer de como ficara com o vestido novo.
Sentiu vontade de vesti-lo, mas não achava bom ir trabalhar com ele.
Enquanto
tomava o café e comia o pão imaginava onde poderia usar o vestido. Nunca saía
para passear.
Aristides apareceu na
cozinha e vendo-a disse:
- Sua mãe está dormindo ainda. Também, ontem ficou
arrumando a cozinha até tarde!
Jacira percebeu a censura
na frase do pai e não se perturbou.
Respondeu apenas:
- A culpa é dela. Nem a
louça do café da manhã ela tinha lavado. Deixou acumular tudo e, claro, teve
mais trabalho na hora de lavar.
- Você sabe que ela é
doente. Não era muito tarde quando você acabou de passar roupa. O que custava
ter cuidado também da louça?
Jacira olhou-o séria:
- Todos nós moramos na casa, dormimos, comemos
aqui, é justo que todos cooperemos para manter a ordem. Eu passo o dia todo
trabalhando para pagar as despesas, enfrento o trânsito pendurada em um ônibus
lotado. Vocês passam o dia
inteiro em casa, sem fazer nada, vendo televisão, conversando com os vizinhos,
lendo jornal e revistas. E quando chego cansada ainda tenho de cuidar da louça
que vocês sujaram o dia inteiro, sendo que eu nem almoço em casa. Acha que é justo?
Aristides olhou-a surpreendido e de pronto não encontrou palavras
para responder. Depois de alguns segundos disse:
- Você fala como se eu fosse culpado por não encontrar
trabalho. - Suspirou triste e continuou: - Você sabe que é difícil. Ninguém emprega um homem
depois dos cinquenta anos. Sua mãe é doente, cansada, não sente disposição
para trabalhar. Você está sendo injusta falando assim. Nós estamos velhos e
merecemos respeito.
Jacira olhou para ele. Era
um homem forte, corado, fisicamente capaz de fazer muitas coisas. Mas era
verdade que o emprego estava difícil até para os mais novos e as empresas não
contratavam os mais velhos. Seu pai estava com mais de sessenta anos.
- O senhor não vai mesmo encontrar trabalho por
causa da idade, mas por que não ajuda a fazer algum serviço de casa?
- O quê? Serviço de casa é
coisa de mulher. Eu me sentiria o último dos homens fazendo isso.
- Isso
é orgulho. Os melhores cozinheiros são homens e são muito respeitados. Há
homens em todas as profissões que fazem os mesmos serviços que as mulheres. São
tintureiros, copeiros, garçons,
e não se envergonham.
- De
onde você tirou essas ideias?
Sua mãe tem razão. Desde que começou a ter essa amiga, está de cabeça
virada. É melhor acabar logo com essa amizade. Você se deixa influenciar muito
depressa pelos pensamentos dos outros.
Jacira
levantou-se irritada, mas conteve-se. Lavou sua xícara, enxugou-a e guardou.
Depois tornou:
- Está
na hora de eu ir. Não quero me atrasar.
Ela
saiu satisfeita por poder ver-se livre dos comentários dele. Durante o trajeto
para a oficina, Jacira foi pensando onde poderia usar o vestido novo.
Poucos
minutos depois, Geni apareceu
na cozinha e Aristides
notou logo que ela não parecia bem. Caminhava apoiando-se nos móveis,
rosto franzido, ar triste.
- O que foi, você não está bem? Geni fixou-o, suspirou, depois
disse:
- Como
você queria que eu estivesse depois do que Jacira me fez ontem? Nunca pensei em
receber tanta ingratidão.
- Também
não foi tanto assim. Afinal, Jacira levanta cedo, trabalha o dia inteiro,
chega cansada e ainda tem que fazer tudo em casa.
- Até
você está contra mim? Que vida a minha. Ninguém faz nada por mim.
- Não
se lamente. Não vai resolver mesmo. Afinal, somos pobres, estou desempregado e
temos que nos sujeitar a ser sustentados por Jacira.
- Você
tem saúde, bem que podia ter aceitado aquele emprego.
- Eu
sou um operário qualificado. Nunca vou sujeitar-me a ficar de porteiro naquele
edifício.
- Por
que não?
-Minha aposentadoria saiu e já cumpri minha parte
trabalhando naquela fábrica desde os quatorze anos. E sabe o que Jacira teve coragem de me
dizer?
Geni havia se sentado
diante da mesa e servia-se de café com leite, passara
margarina em uma generosa fatia de pão e respondeu:
- Não.
Ele continuou:
- Que eu deveria ajudar nos
serviços da casa. Que todos nós moramos aqui e temos o dever de cooperar para
que tudo fique em ordem.
- Até que não seria ruim se
você lavasse uma louça, fizesse uma faxina na cozinha. Assim Jacira não
precisaria trabalhar tanto.
- A obrigação é de vocês
duas. Eu não me presto a fazer serviço de mulher. O que meus amigos iriam dizer
se me encontrassem de avental lavando louça? Fico arrepiado só de pensar!
- Isso é bobagem. Depois,
eles não precisariam saber. Para começar você poderia tirar a mesa, eu já
terminei, e lavar a louça do café.
Aristides irritou-se:
- Não vou fazer isso e acho
melhor você não deixar juntando na pia para não ter de lavar tudo no fim da
noite.
Pelo tom que Jacira usou quando falou comigo, ela não vai querer lavar.
Ela só lavou a xícara que ela usou, a minha ficou.
- Nesse caso, você deveria
ter lavado a sua. Assim eu não teria de lavar tudo.
Ele olhou-a sério. Pelo tanto de café com leite e pão que ela
havia engolido, e pelo tom de voz que estava usando, ele percebeu que ela não
estava doente como dizia.
Ele sabia que ela
costumava exagerar para empurrar todo o serviço da casa para Jacira. Ela
gostava mesmo era de estender-se
no sofá
da sala, colocar os pés no banquinho e ler as revistas de fotonovela.
- Você se lamenta por tudo. Enche a cabeça com
aquelas fotonovelas açucaradas e fica infeliz porque sua
vida não é igual a das mocinhas das histórias. Você, às vezes, parece que ainda
não cresceu. Uma mulher velha como você não deveria acreditar naquelas
baboseiras.
- Você
consegue sempre ser desagradável. Como se fosse melhor do que eu. Fica lendo
jornal o dia inteiro, a noite fica em frente à televisão e nunca quer ver os
programas de que eu gosto.
- Você
só quer ver peças de teatro, filmes. Eu sou um homem bem informado. Gosto da
realidade. Prefiro assistir às notícias. Você vai fazer o almoço?
- Vou
fazer o almoço e só. Não vou arrumar a cozinha.
Aristides deu de ombros:
- Faça
como quiser. O problema é seu. Apanhou o jornal, foi para a sala, sentou-se em
uma poltrona e preparou-se para começar a ler. Naquela tarde, ele iria
ao barbeiro aparar os cabelos e precisava estar bem informado para comentar com
os amigos.
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