quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Capítulo 16 
Jacira chegou em casa carregando várias sacolas que colocou sobre o sofá da sala. Estava bem-vestida e arrumada, muito diferente do que fora no passado.


Geni aproximou-se curiosa e disse admirada:


-   Quanta coisa! Fez compras e não me chamou para ir junto?


-   Eu estava com pressa. O dia da inauguração está chegando e ainda não está tudo pronto.


- Não vai abrir os pacotes?


- Não. Vamos levar estas coisas para o ateliê. Ester vai passar aqui para me buscar. 
 

A curiosidade de Geni aumentou e ela não se conteve:


- Ainda não estou acreditando que você vai ser sócia de uma empresa de luxo! Parece um milagre! Só acredito vendo!

Jacira fixou-a séria e respondeu:

- Pode acreditar.

A campainha tocou e Jacira exclamou:

- Deve ser ela. Correu a abrir. Ester entrou espargindo um de
licioso perfume pelo ar. Era a primeira vez que ia casa de Jacira.

Geni não sabia se deveria ficar ou esconder-se. Lançou o olhar sobre a recém-vinda, entre curiosa e admirada.

Ester aproximou-se e estendeu a mão dizendo:

- A senhora deve ser d. Geni.

-  Sou a mãe de Jacira - respondeu ela apertando a mão estendida.

-  Muito prazer. Eu sempre tive vontade de conhecê-la. A senhora deve orgulhar-se da filha que tem.

- É... De fato...

Voltando-se para Jacira, Ester perguntou:

-  Seu pai não está?

-  Não. Deve estar no bar.

-Gostaria de conhecê-lo também. Mas não faltará ocasião.

-  A senhora aceita um café, uma água? - perguntou Geni, parecendo ter superado o constrangimento.

- Uma água. Geni saiu enquanto Ester piscou maliciosa par
Jacira dizendo baixinho:

- Ela está surpresa e ainda não viu nada! Quer estar junto quando ela entrar em nosso ateliê!

Jacira suspirou e respondeu:

- Eu também! Sabe que às vezes até eu duvido que tudo isso esteja acontecendo?

Ester abraçou-a:

- Está ficando lindo! Vocês têm alma de artista.

- Mas você é quem dá a palavra final. Eu e Margarida estamos aprendendo.

Geni voltou com um copo de água em um pratinho e ofereceu-o a Ester, que agradeceu. Depois que ela tomou a água Jacira disse:

- Vamos levar tudo para o carro. Margarida esta esperando.

- Conseguiu comprar tudo?

- Quase tudo. Consegui o principal. Vamos embora. Ester despediu-se de Geni que as acompanhou até a
porta. Jacira nunca vira a mãe tão amável e sorridente.

Elas saíram e Geni esperou com impaciência que Aristides chegasse. Precisava contar a alguém sobre aquela visita.

Ela não costumava esperar o marido voltar do bar. Quando ele demorava um pouco mais, encon­trava-a dormindo. 

Passava das onze quando finalmente Aristides entrou em casa. 

Vendo-a na sala, a sua espera, perguntou:


- Você ainda acordada? Aconteceu alguma coisa?

- Aconteceu, sim. Você vai ficar tão surpreso quanto eu. O que Jacira nos disse é verdade. A tal da d. Ester esteve aqui para buscá-la. Você precisava ver o carro dela!

- Ela entrou?

-  Entrou, sim. Mulher linda, de classe, cheirosa! Muito simpática e educada. Cumprimentou-me. Nessa hora fiquei com vergonha da nossa casa. Uma mulher tão rica e fina, nosso sofá está descorado, a casa é velha, eu nem sabia o que dizer!

-  Bobagem. Ela sabe que somos pobres. Pelo menos você tinha limpado a casa?

-  Ainda bem que sim. Senão, teria morrido de vergonha.

-  Jacira nos contou que eles são muito ricos. Era de se esperar que um dia ela viesse aqui. Afinal, Jacira é sócia dela.

- Você acredita mesmo nisso?

-  Claro. Eu pedi a Jacira para ver o contrato social da empresa. Está tudo certo. São três sócias, Marga­rida, Jacira e Ester. O marido dela emprestou o ca­pital e vão dividir os lucros em partes iguais.

 Nossa filha agora é uma empresária e, do jeito que vai, pode mesmo ganhar muito dinheiro.

-  Estou boba! Nunca podia imaginar que ela con-seguisse! Parece que tirou a sorte grande!

- Ela tem se esforçado muito. Trabalhado com dis­posição. Merece cada tostão que está ganhando!

-  É... Eu gostaria de conhecer esse ateliê.

-  Ela nos convidou para a inauguração, mas não sei se devemos ir...
-  Por que não?

-  Só vão pessoas finas, de classe, é um lugar de luxo. O que vamos fazer lá? Não sabemos como nos portar no meio daquelas coisas finas. Vai ter um bufê, salgadinhos e tal. Coisas delicadas de gente de classe. Nós vamos fazer feio.

-  Mas se ela nos convidou, eu gostaria de ir, nem que fosse para ficar em um canto sem fazer nada. Nunca vi uma festa dessas.

-  Isso não é para nós! É melhor não se iludir. E tem mais...

Ele fez ligeira pausa, enquanto Geni baixou a ca­beça triste. 

Aristides tinha razão. Eles iriam destoar.

- Pode esperar - continuou ele -, Jacira vai ga­nhar dinheiro e não vai querer mais morar aqui, nesta casa pobre, neste bairro distante.

Ela vai acabar nos deixando, mulher...

Naquela noite, Geni custou a dormir. Ficava imagi­nando como seria esse lugar, essa festa, de que forma Jacira ficaria no meio dessa gente, como agiria. O que faria se Jacira os abandonasse? Esse pensamento a
assustava, mas por outro lado sentia que se ela fosse mesmo embora não deixaria que eles passassem ne­cessidade. Ainda mais se tivesse dinheiro!

Naquela noite, Jacira não voltou para casa. Dormiu na casa de Margarida. Na hora do almoço chegou em casa e perguntou:

-  Papai já foi para o bar?

-  Acabou de sair. Por quê?

- Ontem eu me esqueci de avisar que hoje eu queria sair com vocês dois para comprar roupas.

Geni remexeu-se inquieta e repetiu:

- Comprar roupas?

- Sim. Vocês precisam se arrumar para a inau­guração.

-   Nós não vamos. Seu pai acha que iríamos des­toar no meio daquela gente fina.

-   Pois eu quero ver os dois lá. É o meu dia de vi­tória! Estou conseguindo subir na vida. Quero festejar com minha família.

Os olhos de Geni encheram-se de lágrimas e ela tentou disfarçar. Jacira abraçou-a dizendo:

- Somos pobres, mas somos gente. Não somos mais do que ninguém, mas também não somos menos. Temos trabalhado honestamente, merecemos me­lhorar de vida. Não temos nada para nos envergonhar. Vocês vão comigo, sim. Quero nossa família reunida nesse momento tão importante de minha vida! Vá se arrumar e nós vamos sair já para comprar tudo que for preciso. Tem mais. Já marquei hora no cabeleireiro com meu amigo Belo para cuidar dos seus cabelos e fazer um tratamento de beleza. Quero meus pais muito elegantes!

Geni não suportou a emoção, caiu em pranto, sem poder controlar-se. Jacira deixou que ela extra­vasasse toda a emoção, depois, vendo-a mais calma e um pouco envergonhada pediu:

- Vá lavar o rosto e se arrumar. Não temos muito tempo. Ainda quero passar no bar, falar com papai.

Geni apressou-se a ir arrumar-se enquanto Jacira fazia uma lista do que achava que deveria comprar para que eles ficassem apresentáveis.

Elas saíram e Geni se esforçava para controlar a emoção. Estava atordoada, hesitante. Durante toda sua vida fora ela quem determinara o que a filha de­veria fazer. Sentia-se segura em suas crenças, não se detinha para pensar em nada diferente do que apren­dera com seus pais.

Jacira se rebelara, agia completamente diferente do que ela achava certo. Tinha certeza de que a filha iria fracassar. Mas para sua surpresa, as coisas estavam dando certo. Ela estava derrotando a miséria em que tinham vivido, revelando capacidade, provando que sabia o que estava fazendo.

As coisas nas quais Geni acreditava começaram a ruir. A falsa segurança em que se refugiara desapa­recia a cada dia, e ela, não podendo mais se apoiar nelas, sentia-se insegura, não confiava mais em suas próprias opiniões. Julgava-se ignorante, incapaz.


Jacira estava certa e ela errada. Um sentimento de culpa começou a atormentá-la. Considerava-se inútil, não sabia mais o que era certo ou errado.


Seus filhos tinham ido embora por causa dela que não soubera educá-los. Sua forma de pensar prejudicara o progresso da família. 

Enquanto Jacira obedecera o que ela dizia, não tinha conseguido me­lhorar de vida.

Saiu com Jacira para fazer compras, mas es­tava sem capacidade para escolher. Deixou que a filha decidisse.

Jacira notou que ela não estava bem, fez o que pôde para que ela se entusiasmasse. Mas Geni estava aérea e ela fez o melhor. O tempo era curto e não lhe permitia esperar.

Comprou o que achou adequado e depois foram até o bar. Jacira convenceu o pai a comparecer à inau­guração. Combinaram que na manhã seguinte iriam comprar as roupas dele.

Quando Jacira foi à casa de Margarida, conforme combinara, encontrou Lídia e a filha. Lídia disse logo:

-   Sinto que você está preocupada. O que acon­teceu?

-   Você notou? Levei minha mãe para fazer com­pras, pensei que ela se entusiasmaria com as coisas bonitas que compramos. Mas não, pareceu-me depri­mida, atordoada, sem capacidade de dar opinião.

Eu precisei escolher tudo. Logo ela que sempre foi forte, teve opinião. Será que está doente?

Lídia pensou um pouco, depois disse:

- Não. O problema é que as coisas mudaram, e ela ainda não assimilou.

- Como assim? Nós estamos mudando para me­lhor! Achei que ela fosse ficar feliz!

-  Mas ela está pagando um preço alto pelas crenças erradas que cultivou durante tanto tempo. Está se cul­pando, julgando-se errada, sem capacidade.

Jacira sentou-se fixando Lídia admirada:

- Por essa eu não esperava. Ela nem queria ir à inauguração.
Lídia sorriu levemente ao responder:

- O que está acontecendo é natural. Durante a vida inteira ela impôs suas ideias à família e achava que estava fazendo o melhor. Fez o que pôde para manter você sob a orientação dela, na qual acreditava. Ela pensava estar "salvando" a todos, prevenindo o mal e acabou de descobrir que estava fazendo tudo errado. Por esse motivo não confia mais em seu arbítrio, está sem rumo, não sabe como agir.

-  Deve ser isso mesmo. Hoje ela me parecia uma barata tonta. 

Fiquei com medo que ela esti­vesse perdendo a lucidez. Afinal, já está com quase sessenta anos.

O estado de lucidez não depende da idade, mas de como a pessoa lida com os fatos da vida. Quanto mais ela desenvolver o senso de realidade, mais lúcida ficará. Por outro lado, se der mais importância às apa­rências, 
-  reprimindo o que sente, querendo entrar nos papéis sociais, perderá a lucidez.


- É um castigo? - indagou Margarida atenta ao assunto.

-   Absolutamente. Deus não castiga ninguém. Foi a própria Geni quem escolheu esse caminho. Se ela acordar para a realidade poderá dar um passo à frente. Nunca é tarde para melhorar.

-   Entendo - comentou Jacira. - Não vou deixar que minha mãe mergulhe na alienação. Farei o que Puder para ajudá-la.

-   Seria bom aconselhar-se com o dr. Ernesto. Ele é ótimo nesses assuntos - tornou Lídia. - Eu mesma gostaria muito de fazer mais alguns cursos com ele. De tempos em tempos eu volto lá para reciclar as ideias.

- Vou levar mamãe a essas aulas.

- Se ela aceitar é meio caminho andado. Ela tem alguma fé religiosa? - indagou Lídia.

- Diz que é católica, mas nunca vai à igreja.

- Nesse caso seria bom conversar com ela sobre a vida espiritual. A crença de que somos eternos, que a vida continua depois da morte física, fortalece nosso espírito. Quando você tem certeza de que Deus está dentro de você, inspirando, protegendo, distribuindo bênçãos, os desafios necessários ao nosso cresci­mento ficam mais leves. Você já conversou com ela sobre suas experiências com os espíritos?

Jacira meneou a cabeça negativamente:

- Não. Não sei se ela entenderia.

- A verdade tem muita força. Você sabe disso. Experimente conversar com ela sobre o assunto. Co­mece aos poucos e conforme ela reagir vá falando. Você pode se surpreender.

Jacira sorriu e respondeu:

- Pode ser. Vou experimentar. Assim como me fez tanto bem, poderá ajudá-la também.

Estela e Marinho avisaram que o carro de Ester tinha chegado para levá-las ao novo ateliê. Elas se apressaram, porquanto havia ainda muitas coisas para fazer.

O tempo passou rápido e no dia da inauguração, tudo ficou pronto. Na noite da véspera, as três fizeram um exame geral para que nada faltasse.

Estava tudo uma beleza. Olhando ao redor, Jacira sentia-se emocionada recordando-se da ajuda que re­cebera das pessoas. De Ernesto, que despertara nela a vontade de lutar para progredir; de Margarida, que com bondade dividira com ela seus conhecimentos e seus sonhos; de Ester, que tornara possível a reali­zação dos projetos; e finalmente do espírito de Marina, cujo carinho e amor a acordara para a espiritualidade, modificando sua forma de olhar a vida.

Fitando o rosto emocionado e alegre de Marga­rida e de Ester, Jacira sugeriu: 

-  Antes de irmos embora, vamos fazer uma prece de agradecimento a Deus que nos tem abençoado com sua proteção e auxílio.


-  Ótima ideia. É hora de agradecer - aduziu Mar­garida.

-  Concordo. O amor chegou com Renato e este projeto veio completar minha realização.

Elas deram as mãos fazendo um círculo e Jacira sentiu que uma energia suave e agradável a envolvia e começou a falar:

- A gratidão é um sentimento de amor que eleva o espírito e nos une a Deus. É o reconhecimento do imenso amor com que Ele nos cerca e a certeza de que tudo é possível quando sob sua proteção, esfor-çamo-nos para fazer a parte que nos cabe na realização dos nossos sonhos de progresso. Desejamos seguir em frente, fazendo nosso melhor, contribuindo para que as pessoas que procurem nossos serviços sejam abra­çadas com respeito, alegria e carinho.

"Pedimos a Deus que nos inspire para que pos­samos aprender mais a cada dia, e de nossa parte vamos nos esforçar para fazer desta casa um lugar onde a beleza, o trabalho, a dedicação sejam cons­tantes. Desta forma, desejamos corresponder a tudo que recebemos trabalhando com prazer, alegria e ho­nestidade. Aqui é um lugar de harmonia e paz. Assim será. Que Deus nos abençoe."

Jacira calou-se e elas abriram os olhos sentindo-se leves. O cansaço dos últimos dias tinha desaparecido.

-  Estou flutuando! - comentou Ester.

-  Que coisa boa! Você fez uma prece linda! Nunca vou esquecer este momento.

-  Falei o que estava sentindo. Mas também, senti que Marina estava aqui, inspirando-me.

-  Com essa proteção, estou certa de que amanhã tudo vai ser um sucesso! - comentou Ester.

Margarida não se conteve:

- Só pode! Está tudo tão lindo!

-   Vamos embora. Precisamos descansar - lem­brou Jacira. - Amanhã precisamos estar dispostas.

-   Não sei se vou conseguir dormir. A emoção é demais. Mas é bom irmos embora logo, Jacira. Ester mora do lado, mas nós moramos longe.

-   Meu motorista vai levá-las em casa.

-   Não é preciso - disse Jacira. - Passa das dez e neste horário os ônibus não estão lotados.

- Eu insisto. Ele já está na porta as esperando. Quando elas saíram, o carro as estava esperando.

Passava das onze quando Jacira chegou em casa. Ao entrar, encontrou Geni a aguardando na sala.

-   Mãe, pensei que estivesse dormindo.

-   Estou sem sono. Pensando como vai ser amanhã. 

- Vai ser uma beleza. Está tudo muito bem arrumado. Ester tem muito bom gosto e nos ajudou.


-  Meu coração está apertado.

-  Por quê? Não se sente feliz em melhorar de vida?

Ela não respondeu logo. Ficou pensativa por al­guns segundos e, vendo que Jacira a olhava atenta­mente, continuou:

- Estou com medo de fazer feio. Não quero en­vergonhá-la.

Jacira aproximou-se e colocou a mão no braço dela dizendo:

-  Com aquela roupa linda que nós compramos, aqueles sapatos elegantes?

-  Eu estou me sentindo feia, velha. Não sei con­versar direito.
Jacira sorriu e respondeu:

-  Além do mais, iremos ao salão do Belo para arrumar os cabelos e fazer uma maquiagem. Você vai ficar muito elegante.

-  Seu pai está todo orgulhoso. Disse que vai ao barbeiro logo cedo. No bar já contou a todos sobre a inauguração. Só fala de você o tempo todo.

-  Ele está feliz, mamãe. Venha, sente-se aqui a meu lado no sofá.

Ela obedeceu e Jacira, lembrando-se da conversa com Lídia, segurou a mão dela dizendo:

-   Você não precisa ter medo de nada. Eu me esforcei e Deus nos deu uma chance de melhorar. Nós precisamos agradecer a Ele o que recebemos e fazer o melhor para seguir em frente e aproveitar. Vamos rezar.

-   Rezar? Você nunca foi religiosa.

-   Eu não sou. Mas nada acontece sem que Deus permita.
-   Isso minha mãe sempre dizia.

-   Pois é. Então vamos agradecer e rezar.

Jacira continuou segurando a mão dela e fez uma prece de agradecimento, pedindo inspiração para fazer o que fosse preciso a fim de que tudo saísse bem.

Quando terminou, abriu os olhos e notou que os olhos de Geni estavam marejados.

-   É bom rezar. Faz bem. Eu tinha me esquecido disso.

-   Quando a gente está no bem e com Deus no coração, tudo dá certo. Agora, vamos dormir. Amanhã será um dia cheio.

Elas subiram, e Jacira notou que o rosto de Geni estava mais sereno. Tudo estava bem e ela, apesar do evento do dia seguinte, sentia-se em paz.
 


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