O despertador tocou, Jacira abriu os olhos e olhou o relógio. Estava na hora de levantar-se. A cama estava gostosa e ela tinha vontade de dormir mais um pouco. Mas reagiu, levantou-se e foi lavar o rosto para combater o sono.
Depois,
abriu o guarda-roupas procurando o que vestir. Não gostou de nada, mas apanhou
um deles e vestiu. Olhou-se no espelho e teve vontade de tirá-lo. Era
deselegante, escuro e o tecido grosseiro não lhe caía bem. Depois, batia quase
no tornozelo, nenhuma de suas colegas usava roupas tão compridas.
Abriu
novamente o guarda-roupas tentando encontrar um vestido mais bonito, não viu
nenhum. Conformou-se em ir trabalhar com aquele mesmo.
Levantou
um pouco o vestido e achou que ficaria melhor mais curto. Mas não tinha tempo
para encurtá-lo. Poderia também fazer algumas pensas ajustando-o na cintura.
Mas como não havia tempo para isso, resignou-se e saiu assim mesmo.
Escovou os cabelos e notou
que eram ondulados e brilhosos. Talvez se comprasse uma fivela para prender nas
laterais ficasse melhor.
Passou um pouco de pó no rosto e coloriu os lábios com
batom, mas com um pedaço de papel higiênico
tirou o
excesso deixando quase nada.
Sua mãe dizia que só as
artistas ou prostitutas pintavam o rosto.
Desceu para o café. Geni
colocou o bule sobre a mesa e olhando-a disse:
- Você não acha que está pintada demais? Jacira
sentiu a raiva voltar, tentou controlar-se e não respondeu. Serviu-se de café com leite. Apanhou o pão e, mesmo notando
que estava amanhecido, não reclamou. Passou margarina e molhou o pão no café
com leite, comendo.
- Você não ouviu o que eu disse? É melhor lavar essa
cara pintada. Não pode ir trabalhar desse jeito.
Foi a gota d'água. Jacira
olhou para a mãe e disse entre dentes:
- Eu posso e vou trabalhar do jeito que eu quiser.
Apanhada de surpresa, Geni não respondeu. Jacira continuou:
- Não adianta me olhar com
esse ar inocente. Estou cansada de fazer só o que vocês querem. De hoje em
diante só vou fazer o que eu quiser. E eu quero me pintar, usar roupas bonitas,
como as minhas colegas de trabalho.
- Não acredito no que estou
ouvindo! Por que está falando assim comigo? Eu sou sua mãe e toda a minha vida
tenho sacrificado pela família.
- Eu não pedi que fizesse
isso por mim. Dispenso seu sacrifício. Eu posso cuidar de mim.
Geni rompeu em soluços
gritando:
- Que ingratidão! Nunca esperei isso de você.
Aristides apareceu na porta:
- O que está havendo aqui? Que barulho é esse? Não
posso nem ler meu jornal sossegado.
Geni olhou o marido e
respondeu chorosa:
- Só
porque pedi a Jacira que tirasse a pintura do rosto, ela me respondeu mal,
destratou-me. Não posso suportar isso, depois de tudo o que tenho feito por
ela!
- Você
fez isso mesmo para sua mãe?
- Eu
vou sair do jeito que eu quero, não vou lavar o rosto.
- Sua
mãe fala para o seu bem. Uma boa filha deve obedecer.
- Meu
bem? O senhor acha que a vida que estou levando é um bem? Vestindo-me mal,
vivendo como um burro de carga, trabalhando sem nunca fazer nada do que gosto?
- A
vida é ingrata mesmo. Veja meu caso. Depois de tantos anos de trabalho fiquei
desempregado tendo de viver à custa dos filhos.
- De
mim, o senhor quer dizer, porque os outros dois foram mais espertos e saíram de
casa.
- Está
vendo, Tide? Nunca esperei que nossa filha fizesse isso!
- É...
De fato... O que deu em você?
- Eu
me cansei, pai. Cansei-me, ouviu? De hoje em diante só vou fazer da minha vida
o que eu quiser. Não quero conselhos de ninguém, muito menos de vocês dois.
Olhando-o
com raiva, Jacira apanhou a bolsa e saiu. Os dois ficaram se olhando
assustados.
- O
que será que deu nela? - perguntou Aristides.
- Acho
que é falta de casamento. Pelo menos se tivéssemos arranjado um marido para
ela, hoje ele ajudaria a sustentar a casa.
- Pois
eu acho que se ela tivesse marido, há muito teria nos abandonado. Foi melhor
termos evitado que se casasse. Depois, quem se interessaria por ela? Jacira é
sem graça.
- Mas
nunca pôs as manguinhas de fora como hoje. Estou assustada.
- Bobagem.
Isso passa. Logo estará de volta, arrependida como sempre. Jacira sempre foi
uma filha obediente.
-Você
acha mesmo?
- Claro.
Ela precisa de nós. É sozinha, não tem amigos nem nada. Isso vai passar.
Jacira
saiu de casa sentindo as pernas trêmulas e a raiva tumultuando seus
pensamentos.
Quantos
anos de sua vida perdera ouvindo os conselhos errados de seus pais? A vida
toda, sempre que ela desejava arrumar-se melhor, ter um pouco de vaidade
pessoal, eles a continham, alegando que nela não ficava bem, que ela não era bonita,
que sendo pobre deveria conformar-se em ter uma vida dura, difícil e não
esperar nada melhor.
Por
que acreditara neles? Por que deixara passar sua juventude se apagando sem
nunca ter tido prazer nem amor?
O que deveria fazer de sua vida agora? Deveria
conformar-se e continuar como sempre fora?
Talvez
fosse tarde para tentar mudar. Sentia-se velha e ao mesmo tempo inexperiente.
Mas dentro dela brotava uma energia que nunca havia sentido, um desejo de
viver, de experimentar o gosto das coisas das quais sempre se privara.
Mas
como fazer isso? Como sair da mediocridade em que estava mergulhada e buscar
coisas novas?
Chegou
à oficina, iniciou seu trabalho, mas mil pensamentos tumultuavam sua cabeça. De
uma coisa estava certa: como estava não poderia ficar.
Quando
o sinal tocou para o almoço, suas companheiras saíram, porém ela ficou. Estava
sem fome. Postou-se diante do espelho e começou a pensar em modificar seu
vestido. Decidiu não só ajustá-lo como encurtá-lo. Tirou-o, vestiu o jaleco e começou a reformá-lo.
Pouco
antes de suas colegas voltarem do almoço, ela já havia terminado. Vestiu-o
novamente e voltou ao espelho.
Gostou do resultado. Parecia mais alta e mais
magra. Sua cintura era fina e ela pensou em comprar um cinto. Olhou o relógio e
viu que tinha apenas dez minutos, não daria tempo.
Sentiu fome, apanhou a carteira e foi à padaria da
esquina comprar um pão com manteiga. Algumas colegas suas estavam na porta da
oficina e outras estavam chegando.
Jacira notou que algumas a
olharam admiradas e seu coração bateu mais forte. Entrou na padaria, um homem
tomava café no balcão e começou a olhá-la fixamente.
Ela sentiu as pernas
bambas. Era a primeira vez que um homem a olhava daquela forma. Apesar de
assustada, sentiu uma sensação agradável. Fingiu que não viu. Comprou o pão e
saiu tentando dissimular a emoção.
Entrou na oficina, sentou-se em um canto discreto e começou a comer o pão.
Margarida aproximou-se:
- Você vai comer só isso?
Jacira olhou-a surpreendida. Suas colegas nunca a procuravam para
conversar.
- Vou. Estou sem fome.
- Quer um pouco de guaraná?
Antes que Jacira
respondesse, ela apanhou um copo, despejou o guaraná e deu-o a ela que, embora acanhada, segurou-o dizendo:
- Obrigada.
Margarida sorriu contente.
Era uma mulher de cerca de trinta anos, baixa estatura, olhos escuros, rosto
quadrado, cabelos lisos e negros. Fazia mais de um ano que ela trabalhava na
oficina, era de pouca conversa, geralmente andava sozinha.
O relacionamento de Jacira
com ela nunca fora além do cumprimento formal. Margarida sentou-se ao lado dela e olhando-a disse:
- Ainda bem que você
resolveu dar um jeito nesse seu vestido.
Muitas vezes tive vontade de fazer
isso. Antes de trabalhar aqui eu tinha uma casa de moda. Infelizmente, perdi
tudo e não me restou alternativa, senão aceitar este emprego.
- Eu não sou modista, mas
estou cansada de minhas roupas.
- Você
tem um corpo bonito, cintura fina, corpo bem feito. Se eu tivesse um corpo como
o seu, andaria sempre com roupa bem justa.
- Eu
também não gosto dos meus vestidos, mas minha mãe não gosta que eu use vestido
justo.
Margarida
olhou-a admirada:
- Você
andava assim para não contrariar sua mãe?
- É.
Ela é doente, meus dois irmãos foram embora, fiquei só eu. Meu pai está
desempregado e anda muito nervoso. Eu cuido deles.
- Hum! Sei. Eu tenho um filho de seis anos para sustentar.
- E o
seu marido?
- Não sou casada. Tive um caso
e quando ele soube que eu estava grávida, foi embora. Mas não liguei, não. Sou
suficiente para cuidar do meu filho.
- E
sua mãe? Não brigou com você?
- Ela
e meu pai queriam que eu fizesse um aborto, mas eu não quis e assumi o filho,
mandaram-me embora de casa. Não me arrependo.
O Marinho iluminou minha vida.
Jacira notou o brilho dos olhos dela ao dizer
isso e sentiu uma ponta de inveja. Suspirou pensativa. Margarida perguntou:
- E
você, é casada?
- Eu?
Não.
Nos olhos dela apareceu o brilho de uma
lágrima. Teve vergonha de confessar que nunca havia tido sequer um namorado.
O sinal soou, Jacira tomou o restante do
guaraná e entraram.
Durante todo o expediente Jacira só pensou
nos acontecimentos do dia. Alguma coisa havia mudado. Podia sentir. O homem na
padaria e a aproximação de Margarida sinalizavam que ela estava diferente.
Na hora da saída, Margarida aproximou-se novamente:
- Você
não leva a mal se eu lhe disser uma coisa?
- Não.
Pode falar, o que é?
- Já
que mudou o vestido, por que não faz um bom corte nos cabelos?
- Eu
gosto deles compridos.
- Para
seu formato de rosto, se eles fossem mais curtos, você tiraria uns dez anos de
cima.
- Você
acha?
- Acho.
Quando eu trabalhava com moda, sabia bem o que combinava com quê. Pode
acreditar, sei o que estou dizendo.
- É,
pode ser. Mas agora não tenho dinheiro para isso. Quando receber estou pensando
em comprar um vestido.
- Eu
tenho um amigo que tem um salão e corta cabelo de muitas madames. É um profissional. Se quiser
eu posso ir com você e ele vai cobrar bem barato.
- Está
bem. Quando eu decidir, falo com você. Elas foram caminhando até o ponto de
ônibus,
mas
cada uma ia para um lugar diferente, por essa razão se separaram.
Depois
das dificuldades de sempre, Jacira chegou em casa. Assim que entrou, ouviu uma
exclamação assustada:
- Jacira!
O que você fez?
- Nada,
mãe!
- O
que aconteceu com seu vestido? Encolheu?
Jacira
sentiu uma onda de rancor. Naquele instante todo seu sentimento de revolta
aflorou com violência e ela não conseguiu se dominar.
Encarou
Geni com
raiva e respondeu com voz alterada:
- Não,
mãe. Eu o apertei.
- Que
horror. Está parecendo uma prostituta.
- Você
acha? Pois de agora em diante vai ser assim. Estou cansada de andar vestida
como uma velha. Quero andar na moda, viver como todas as moças.
- Pois
você já é uma velha. Só faltava agora ser uma solteirona sirigaita. Vá
já tirar esse vestido.
- Não
vou.
- Não
ouse me contrariar. Sabe que não posso passar nervoso. Sou uma pessoa doente.
Quer me matar?
Aristides apareceu na sala dizendo irritado:
- Será
que não se pode ler o jornal sossegado? Que barulho é esse?
- É
sua filha que está acabando comigo.
- O
que você fez, Jacira?
- Nada
demais. Acontece que cansei de andar vestida como uma velha. Decidi mudar minha
maneira de ser. Vou andar na moda.
- Veja.
Ela acha que andar na moda é usar esse vestido apertado, curto, como essas
mocinhas de agora, de cara pintada, que são faladas. Depois de velha quer nos
envergonhar.
Aristides mediu Jacira de alto a baixo e não achou nada de
diferente. Geralmente ele não olhava muito para a filha. Mas não querendo
contrariar Geni, tentou
contemporizar:
- Sua
mãe fala para o seu bem. Melhor obedecer.
- Desta
vez não vou obedecer. Todas as colegas da oficina usam roupas assim e eu vou
continuar usando. Vou reformar todos os meus vestidos.
- Está
vendo, Tide? Ela quer acabar comigo! Ai, estou me sentindo mal. Acho que vou
desmaiar.
Aristides correu para ampará-la, certo de que Jacira iria
ajudá-lo, mas ela deu de ombros dizendo:
- É
melhor se acostumar. Vou tomar um banho. E subiu para o quarto. Geni chorou um pouco nos
braços
do marido para não dar o braço a torcer.
- O
que aconteceu com ela? Sempre foi uma boa filha. São as más companhias, com
certeza.
Aristides odiava as queixas da mulher e respondeu:
- Cuidado
com o que você fala. Jacira nem amigas
tem.
- Devem
ser as colegas da oficina que enchem a cabeça dela.
- Esqueça
isso. Não fale nem de brincadeira. Ela está revoltada. Já pensou se resolve
deixar o emprego? Do que vamos viver?
- Você
é um velho imprestável. Não consegue nem arranjar trabalho.
- Não
brigue comigo. Não tenho culpa das bobagens de Jacira.
- Bobagens?
Chama isso de bobagens? Quero ver quando nossa filha ficar falada se você não
vai me dar razão.
- É melhor
se acalmar. Ela vai refletir e voltar atrás. Você vai ver. Agora quero ler meu
jornal.
Ele
foi para o quarto, fechou a porta e mergulhou prazerosamente na leitura.
Jacira
tomou um banho, vestiu o roupão e abriu o guarda-roupas para procurar o próximo
vestido que iria reformar.
Quanto
mais olhava suas roupas, menos gostava delas. Parecia que as estava vendo pela
primeira vez. Eram horríveis.
Depois
de muito procurar, sentou-se na cama desanimada. Se tivesse dinheiro, jogaria
todos no lixo e compraria tudo novo. Mas isso era impossível. Tinha de
conformar-se em ir tentando melhorá-los como podia.
Até
seu emprego na oficina, que sempre considerara uma sorte ter conseguido,
naquele momento pareceu-lhe péssimo, uma vez que trabalhava muito e no fim do
mês não ganhava o suficiente nem para comprar algum vestido.
Também,
as despesas da casa estavam cada dia mais altas. Era só ela a trabalhar e todos
a consumir. A cada dia estava mais difícil para seu pai arranjar emprego. E se
ele nunca mais conseguisse trabalhar? Ela teria de sacrificar-se pelo resto da
vida.
Não
era justo. Ela devia ter ido embora de casa como os irmãos fizeram. Eles foram
espertos.
Mas
ao mesmo tempo sentia remorsos por estar pensando assim. Precisava arranjar um
emprego melhor. Mas onde? Não tinha uma profissão que lhe permitisse ganhar
mais.
Naquele
momento arrependeu-se de não ter continuado estudando. Assim que terminara o
ensino fundamental I, começara a trabalhar para ajudar em casa. No fim do mês dava
todo o salário para a mãe, que lhe comprava as roupas e pagava a condução.
Nunca mais pensou em
estudar. Quando seu pai perdeu o emprego começaram as dificuldades.
Se ao menos ela houvesse
encontrado um marido que a ajudasse a manter a família, não se importaria de
ganhar pouco. Pelo menos teria um amor, filhos, que compensariam todos os
sacrifícios.
Mas triste, sem amor, só
trabalhando, envelhecendo sozinha, não dava para aguentar. Estava no limite
de sua resistência.
Quando assistia a um filme
de amor, sentia arder dentro dela o desejo de experimentar essa emoção. Mas
ninguém sequer a olhava.
Lembrou-se
novamente do olhar do homem da
padaria. Ele era alto, forte, não se lembrava bem do rosto dele. Tivera
vergonha de encará-lo, só conseguia recordar o brilho dos olhos dele e o
prazer de ser vista pela primeira vez como mulher.
Ela precisava fazer alguma
coisa. Se continuasse como estava iria ficar cada vez mais velha, mais feia e
mais pobre. A esse pensamento resolveu reagir. Levantou-se e foi ao guarda-roupas,
escolheu
o vestido que lhe pareceu menos feio e quando o colocou sobre a cama, lembrou-se de que fora com aquele vestido que conhecera aquele
homem perfumado, bem-vestido, que a amparara ao descer do ônibus. Ele lhe oferecera ajuda. Teria condições de fazer
alguma coisa?
Procurou o cartão na
gaveta, encontrou-o e leu: Ernesto Vilares.
Ficou pensativa.
"Devia ir vê-lo? E se
fosse uma pessoa mal-intencionada? Ele mostrara-se respeitoso, educado. Não lhe parecera um homem
perigoso. Depois, o que ela tinha a perder? Pior do que estava sua vida não
poderia ficar. Iria até lá no dia seguinte a pretexto de lhe devolver o lenço
e, assim, poderia conhecê-lo melhor."
Ele era um homem fino, elegante, ela gostaria de apresentar-se melhor, olhou o vestido que colocara sobre a cama.
Era escuro e sem graça. Mas os outros eram piores, conformou-se em tentar reformar aquele mesmo.
Deitou-se,
mas custou a adormecer. Mil
pensamentos tumultuavam sua cabeça. Ora pensava em ir embora de casa, ora
sentia que se abandonasse os pais eles não teriam como se sustentar.
Ela teria de ficar. Mas
uma coisa era certa, não se submeteria a eles como antes. Estava determinada a
decidir o que fazer de sua vida dali para a frente.
Procurou encontrar um jeito de melhorar sua vida e,
embora sabendo que seria difícil, decidiu não desistir. Do jeito que estava
não podia continuar. Pensando nisso, finalmente conseguiu adormecer.
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