sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Capítulo 2
O despertador tocou, Jacira abriu os olhos e olhou o relógio. Estava na hora de levantar-se. A cama es­tava gostosa e ela tinha vontade de dormir mais um pouco. Mas reagiu, levantou-se e foi lavar o rosto para combater o sono.


Depois, abriu o guarda-roupas procurando o que vestir. Não gostou de nada, mas apanhou um deles e vestiu. Olhou-se no espelho e teve vontade de tirá-lo. Era deselegante, escuro e o tecido grosseiro não lhe caía bem. Depois, batia quase no tornozelo, nenhuma de suas colegas usava roupas tão compridas.


Abriu novamente o guarda-roupas tentando en­contrar um vestido mais bonito, não viu nenhum. Con­formou-se em ir trabalhar com aquele mesmo.


Levantou um pouco o vestido e achou que ficaria melhor mais curto. Mas não tinha tempo para encurtá-lo. Poderia também fazer algumas pensas ajustando-o na cintura. Mas como não havia tempo para isso, re­signou-se e saiu assim mesmo.


Escovou os cabelos e notou que eram ondulados e brilhosos. Talvez se comprasse uma fivela para prender nas laterais ficasse melhor. 

Passou um pouco de pó no rosto e coloriu os lábios com batom, mas com um pedaço de papel higiênico tirou o excesso deixando quase nada.


Sua mãe dizia que só as artistas ou prostitutas pintavam o rosto.


Desceu para o café. Geni colocou o bule sobre a mesa e olhando-a disse:


- Você não acha que está pintada demais? Jacira sentiu a raiva voltar, tentou controlar-se e não respondeu. Serviu-se de café com leite. Apanhou o pão e, mesmo notando que estava amanhecido, não reclamou. Passou margarina e molhou o pão no café com leite, comendo.


- Você não ouviu o que eu disse? É melhor lavar essa cara pintada. Não pode ir trabalhar desse jeito.


Foi a gota d'água. Jacira olhou para a mãe e disse entre dentes:

- Eu posso e vou trabalhar do jeito que eu quiser. Apanhada de surpresa, Geni não respondeu. Ja­cira continuou: 
 

-  Não adianta me olhar com esse ar inocente. Estou cansada de fazer só o que vocês querem. De hoje em diante só vou fazer o que eu quiser. E eu quero me pintar, usar roupas bonitas, como as minhas colegas de trabalho.


-  Não acredito no que estou ouvindo! Por que está falando assim comigo? Eu sou sua mãe e toda a minha vida tenho sacrificado pela família.

-  Eu não pedi que fizesse isso por mim. Dispenso seu sacrifício. Eu posso cuidar de mim.

Geni rompeu em soluços gritando:

- Que ingratidão! Nunca esperei isso de você. Aristides apareceu na porta:
- O que está havendo aqui? Que barulho é esse? Não posso nem ler meu jornal sossegado.

Geni olhou o marido e respondeu chorosa:

- Só porque pedi a Jacira que tirasse a pintura do rosto, ela me respondeu mal, destratou-me. Não posso suportar isso, depois de tudo o que tenho feito por ela!

-   Você fez isso mesmo para sua mãe?

-   Eu vou sair do jeito que eu quero, não vou lavar o rosto.

-   Sua mãe fala para o seu bem. Uma boa filha deve obedecer.

-   Meu bem? O senhor acha que a vida que estou levando é um bem? Vestindo-me mal, vivendo como um burro de carga, trabalhando sem nunca fazer nada do que gosto?

-   A vida é ingrata mesmo. Veja meu caso. Depois de tantos anos de trabalho fiquei desempregado tendo de viver à custa dos filhos.

-   De mim, o senhor quer dizer, porque os outros dois foram mais espertos e saíram de casa.

-   Está vendo, Tide? Nunca esperei que nossa filha fizesse isso!
-   É... De fato... O que deu em você?

-   Eu me cansei, pai. Cansei-me, ouviu? De hoje em diante só vou fazer da minha vida o que eu quiser. Não quero conselhos de ninguém, muito menos de vocês dois.

Olhando-o com raiva, Jacira apanhou a bolsa e saiu. Os dois ficaram se olhando assustados.

-   O que será que deu nela? - perguntou Aristides.

-   Acho que é falta de casamento. Pelo menos se tivéssemos arranjado um marido para ela, hoje ele ajudaria a sustentar a casa.
-   Pois eu acho que se ela tivesse marido, há muito teria nos abandonado. Foi melhor termos evitado que se casasse. Depois, quem se interessaria por ela? Ja­cira é sem graça.

-    Mas nunca pôs as manguinhas de fora como hoje. Estou assustada.

-    Bobagem. Isso passa. Logo estará de volta, arrependida como sempre. Jacira sempre foi uma filha obediente.

-Você acha mesmo?

-   Claro. Ela precisa de nós. É sozinha, não tem amigos nem nada. Isso vai passar.


Jacira saiu de casa sentindo as pernas trêmulas e a raiva tumultuando seus pensamentos.

Quantos anos de sua vida perdera ouvindo os conselhos errados de seus pais? A vida toda, sempre que ela desejava arrumar-se melhor, ter um pouco de vaidade pessoal, eles a continham, alegando que nela não ficava bem, que ela não era bonita, que sendo pobre deveria conformar-se em ter uma vida dura, di­fícil e não esperar nada melhor.

Por que acreditara neles? Por que deixara passar sua juventude se apagando sem nunca ter tido prazer nem amor?

O que deveria fazer de sua vida agora? Deveria conformar-se e continuar como sempre fora?

Talvez fosse tarde para tentar mudar. Sentia-se velha e ao mesmo tempo inexperiente. Mas dentro dela brotava uma energia que nunca havia sentido, um de­sejo de viver, de experimentar o gosto das coisas das quais sempre se privara.

Mas como fazer isso? Como sair da mediocridade em que estava mergulhada e buscar coisas novas?

Chegou à oficina, iniciou seu trabalho, mas mil pensamentos tumultuavam sua cabeça. De uma coisa estava certa: como estava não poderia ficar.

Quando o sinal tocou para o almoço, suas compa­nheiras saíram, porém ela ficou. Estava sem fome. Postou-se diante do espelho e começou a pensar em modificar seu vestido. Decidiu não só ajustá-lo como encurtá-lo. Tirou-o, vestiu o jaleco e começou a reformá-lo.

Pouco antes de suas colegas voltarem do almoço, ela já havia terminado. Vestiu-o novamente e voltou ao espelho.

Gostou do resultado. Parecia mais alta e mais magra. Sua cintura era fina e ela pensou em comprar um cinto. Olhou o relógio e viu que tinha apenas dez minutos, não daria tempo.

Sentiu fome, apanhou a carteira e foi à padaria da esquina comprar um pão com manteiga. Algumas colegas suas estavam na porta da oficina e outras es­tavam chegando.

Jacira notou que algumas a olharam admiradas e seu coração bateu mais forte. Entrou na padaria, um homem tomava café no balcão e começou a olhá-la fixamente.

Ela sentiu as pernas bambas. Era a primeira vez que um homem a olhava daquela forma. Apesar de assustada, sentiu uma sensação agradável. Fingiu que não viu. Comprou o pão e saiu tentando dissimular a emoção.

Entrou na oficina, sentou-se em um canto discreto e começou a comer o pão. Margarida aproximou-se:

- Você vai comer só isso?

Jacira olhou-a surpreendida. Suas colegas nunca a procuravam para conversar.

-  Vou. Estou sem fome.


-  Quer um pouco de guaraná?

Antes que Jacira respondesse, ela apanhou um copo, despejou o guaraná e deu-o a ela que, embora acanhada, segurou-o dizendo:
- Obrigada.

Margarida sorriu contente. Era uma mulher de cerca de trinta anos, baixa estatura, olhos escuros, rosto quadrado, cabelos lisos e negros. Fazia mais de um ano que ela trabalhava na oficina, era de pouca conversa, geralmente andava sozinha.

O relacionamento de Jacira com ela nunca fora além do cumprimento formal. Margarida sentou-se ao lado dela e olhando-a disse:

-  Ainda bem que você resolveu dar um jeito nesse seu vestido. 

Muitas vezes tive vontade de fazer isso. Antes de trabalhar aqui eu tinha uma casa de moda. Infelizmente, perdi tudo e não me restou alternativa, senão aceitar este emprego.

-  Eu não sou modista, mas estou cansada de mi­nhas roupas.

- Você tem um corpo bonito, cintura fina, corpo bem feito. Se eu tivesse um corpo como o seu, andaria sempre com roupa bem justa.

-  Eu também não gosto dos meus vestidos, mas minha mãe não gosta que eu use vestido justo.

Margarida olhou-a admirada:

- Você andava assim para não contrariar sua mãe?

-  É. Ela é doente, meus dois irmãos foram em­bora, fiquei só eu. Meu pai está desempregado e anda muito nervoso. Eu cuido deles.

-  Hum! Sei. Eu tenho um filho de seis anos para sustentar.

- E o seu marido?

- Não sou casada. Tive um caso e quando ele soube que eu estava grávida, foi embora. Mas não li­guei, não. Sou suficiente para cuidar do meu filho.

- E sua mãe? Não brigou com você?

- Ela e meu pai queriam que eu fizesse um aborto, mas eu não quis e assumi o filho, mandaram-me em­bora de casa. Não me arrependo. 

O Marinho iluminou minha vida.

Jacira notou o brilho dos olhos dela ao dizer isso e sentiu uma ponta de inveja. Suspirou pensativa. Mar­garida perguntou:

-  E você, é casada?

-  Eu? Não.

Nos olhos dela apareceu o brilho de uma lágrima. Teve vergonha de confessar que nunca havia tido se­quer um namorado.

O sinal soou, Jacira tomou o restante do guaraná e entraram.

Durante todo o expediente Jacira só pensou nos acontecimentos do dia. Alguma coisa havia mudado. Podia sentir. O homem na padaria e a aproximação de Margarida sinalizavam que ela estava diferente.

Na hora da saída, Margarida aproximou-se no­vamente:

-  Você não leva a mal se eu lhe disser uma coisa?

-  Não. Pode falar, o que é?


- Já que mudou o vestido, por que não faz um bom corte nos cabelos?

-   Eu gosto deles compridos.

-   Para seu formato de rosto, se eles fossem mais curtos, você tiraria uns dez anos de cima.

-   Você acha?

-   Acho. Quando eu trabalhava com moda, sabia bem o que combinava com quê. Pode acreditar, sei o que estou dizendo.

-   É, pode ser. Mas agora não tenho dinheiro para isso. Quando receber estou pensando em comprar um vestido.

-   Eu tenho um amigo que tem um salão e corta ca­belo de muitas madames. É um profissional. Se quiser eu posso ir com você e ele vai cobrar bem barato.

- Está bem. Quando eu decidir, falo com você. Elas foram caminhando até o ponto de ônibus,
mas cada uma ia para um lugar diferente, por essa razão se separaram.

Depois das dificuldades de sempre, Jacira chegou em casa. Assim que entrou, ouviu uma exclamação assustada:

-   Jacira! O que você fez?

-   Nada, mãe!

- O que aconteceu com seu vestido? Encolheu?

Jacira sentiu uma onda de rancor. Naquele ins­tante todo seu sentimento de revolta aflorou com vio­lência e ela não conseguiu se dominar.

Encarou Geni com raiva e respondeu com voz al­terada:

-  Não, mãe. Eu o apertei.

-  Que horror. Está parecendo uma prostituta.

- Você acha? Pois de agora em diante vai ser assim. Estou cansada de andar vestida como uma velha. Quero andar na moda, viver como todas as moças.

-  Pois você já é uma velha. Só faltava agora ser uma solteirona sirigaita. Vá já tirar esse vestido.

- Não vou.

- Não ouse me contrariar. Sabe que não posso passar nervoso. Sou uma pessoa doente. Quer me matar?

Aristides apareceu na sala dizendo irritado:

-   Será que não se pode ler o jornal sossegado? Que barulho é esse?
-   É sua filha que está acabando comigo.

-   O que você fez, Jacira?

-   Nada demais. Acontece que cansei de andar vestida como uma velha. Decidi mudar minha maneira de ser. Vou andar na moda.
-   Veja. Ela acha que andar na moda é usar esse vestido apertado, curto, como essas mocinhas de agora, de cara pintada, que são faladas. Depois de velha quer nos envergonhar.

Aristides mediu Jacira de alto a baixo e não achou nada de diferente. Geralmente ele não olhava muito para a filha. Mas não querendo contrariar Geni, tentou contemporizar:


-   Sua mãe fala para o seu bem. Melhor obedecer.

-   Desta vez não vou obedecer. Todas as colegas da oficina usam roupas assim e eu vou continuar usando. Vou reformar todos os meus vestidos.

-   Está vendo, Tide? Ela quer acabar comigo! Ai, estou me sentindo mal. Acho que vou desmaiar.

Aristides correu para ampará-la, certo de que Ja­cira iria ajudá-lo, mas ela deu de ombros dizendo:

- É melhor se acostumar. Vou tomar um banho. E subiu para o quarto. Geni chorou um pouco nos
braços do marido para não dar o braço a torcer.

- O que aconteceu com ela? Sempre foi uma boa filha. São as más companhias, com certeza.

Aristides odiava as queixas da mulher e respondeu:

- Cuidado com o que você fala. Jacira nem amigas
tem.

-  Devem ser as colegas da oficina que enchem a cabeça dela.

-  Esqueça isso. Não fale nem de brincadeira. Ela está revoltada. Já pensou se resolve deixar o emprego? Do que vamos viver?

- Você é um velho imprestável. Não consegue nem arranjar trabalho.

-   Não brigue comigo. Não tenho culpa das boba­gens de Jacira.

-   Bobagens? Chama isso de bobagens? Quero ver quando nossa filha ficar falada se você não vai me dar razão.

-   É melhor se acalmar. Ela vai refletir e voltar atrás. Você vai ver. Agora quero ler meu jornal.

Ele foi para o quarto, fechou a porta e mergulhou prazerosamente na leitura.

Jacira tomou um banho, vestiu o roupão e abriu o guarda-roupas para procurar o próximo vestido que iria reformar.

Quanto mais olhava suas roupas, menos gostava delas. Parecia que as estava vendo pela primeira vez. Eram horríveis.

Depois de muito procurar, sentou-se na cama de­sanimada. Se tivesse dinheiro, jogaria todos no lixo e compraria tudo novo. Mas isso era impossível. Tinha de conformar-se em ir tentando melhorá-los como podia.

Até seu emprego na oficina, que sempre consi­derara uma sorte ter conseguido, naquele momento pareceu-lhe péssimo, uma vez que trabalhava muito e no fim do mês não ganhava o suficiente nem para comprar algum vestido.

Também, as despesas da casa estavam cada dia mais altas. Era só ela a trabalhar e todos a consumir. A cada dia estava mais difícil para seu pai arranjar em­prego. E se ele nunca mais conseguisse trabalhar? Ela teria de sacrificar-se pelo resto da vida.

Não era justo. Ela devia ter ido embora de casa como os irmãos fizeram. Eles foram espertos.


Mas ao mesmo tempo sentia remorsos por estar pensando assim. Precisava arranjar um emprego melhor. Mas onde? Não tinha uma profissão que lhe permitisse ganhar mais.

Naquele momento arrependeu-se de não ter continuado estudando. Assim que terminara o ensino fundamental I, começara a trabalhar para ajudar em casa. No fim do mês dava todo o salário para a mãe, que lhe comprava as roupas e pagava a condução.

Nunca mais pensou em estudar. Quando seu pai perdeu o emprego começaram as dificuldades.

Se ao menos ela houvesse encontrado um marido que a ajudasse a manter a família, não se importaria de ganhar pouco. Pelo menos teria um amor, filhos, que compensariam todos os sacrifícios.

Mas triste, sem amor, só trabalhando, envelhe­cendo sozinha, não dava para aguentar. Estava no li­mite de sua resistência.

Quando assistia a um filme de amor, sentia arder dentro dela o desejo de experimentar essa emoção. Mas ninguém sequer a olhava.

Lembrou-se novamente do olhar do homem da padaria. Ele era alto, forte, não se lembrava bem do rosto dele. Tivera vergonha de encará-lo, só conse­guia recordar o brilho dos olhos dele e o prazer de ser vista pela primeira vez como mulher.

Ela precisava fazer alguma coisa. Se continuasse como estava iria ficar cada vez mais velha, mais feia e mais pobre. A esse pensamento resolveu reagir. Le­vantou-se e foi ao guarda-roupas, escolheu o vestido que lhe pareceu menos feio e quando o colocou sobre a cama, lembrou-se de que fora com aquele vestido que conhecera aquele homem perfumado, bem-vestido, que a amparara ao descer do ônibus. Ele lhe ofe­recera ajuda. Teria condições de fazer alguma coisa?

Procurou o cartão na gaveta, encontrou-o e leu: Er­nesto Vilares. Ficou pensativa.

"Devia ir vê-lo? E se fosse uma pessoa mal-inten­cionada? Ele mostrara-se respeitoso, educado. Não lhe parecera um homem perigoso. Depois, o que ela tinha a perder? Pior do que estava sua vida não poderia ficar. Iria até lá no dia seguinte a pretexto de lhe devolver o lenço e, assim, poderia conhecê-lo melhor."

Ele era um homem fino, elegante, ela gostaria de apresentar-se melhor, olhou o vestido que colocara sobre a cama. Era escuro e sem graça. Mas os ou­tros eram piores, conformou-se em tentar reformar aquele mesmo.

Deitou-se, mas custou a adormecer. Mil pensa­mentos tumultuavam sua cabeça. Ora pensava em ir embora de casa, ora sentia que se abandonasse os pais eles não teriam como se sustentar.

Ela teria de ficar. Mas uma coisa era certa, não se submeteria a eles como antes. Estava determinada a decidir o que fazer de sua vida dali para a frente.


Procurou encontrar um jeito de melhorar sua vida e, embora sabendo que seria difícil, decidiu não de­sistir. Do jeito que estava não podia continuar. Pen­sando nisso, finalmente conseguiu adormecer.



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